Uma arquiteta que, ao se
aposentar, quer ser florista, quer trabalhar com flores. Esse é um sonho do
qual não desiste e já planeja os dias que virão. Sim, ela gosta da profissão, é
competente, mas buscará as flores quando não precisar mais ser arquiteta. É ela
mesma quem fala da beleza da flor do cacto, tão delicada, contrastando com os
espinhos que recobrem a planta. Não, ela não relacionou o cacto à vida nova de
florista daqui a alguns anos. Tampouco relacionou os espinhos à vida presente, que
certamente exige dela muitas posturas defensivas. Ela apenas falou da
delicadeza de uma flor que se protege atrás de espinhos. E ela quer,
tão-somente, ser florista.
Sua pintura, segundo relata,
mostra uma base sólida (de arquiteta e virginiana, ela diz) e, acima, o que ela
descreve como uma flor. As pétalas da flor têm forma de coração. Cada pétala,
uma cor diferente. Sua fala sugere que, apesar do sonho de ser florista, não
esquece da base da arquiteta. Comento sobre a ausência de talos, de elos, entre
a flor e o chão. A flor flutua
paralelamente à retidão inerte da “base”, pintada com marrom firme, cor do
solo. A flor não se une à base sólida no rodapé do papel. Não há entre elas (a
flor e a base) a mais tênue ligação visível. Apenas estão lá: uma no baixo, a outra
no alto. Uma fixa, outra flutuante.
Coincidentemente, todas as
mulheres (desconhecidas entre si, a maioria) queixam-se de que se sentem mais
homens do que mulheres. São mulheres com formação superior, bonitas, casadas,
separadas, solteiras. Mas todas, todas elas se sentem mais homem do que mulher.
E reclamam do peso que é ser homem sendo mulher.
A proposta inicial era responder livremente
a um poema de Orides Fontela:
Adivinha
O que é impalpável
mas
pesa
O que é sem rosto
mas
fere
O que é invisível
mas
dói
(Orides Fontela)
As respostas racionais foram
inúmeras. E, ainda que camufladas pela consciência, já revelavam uma versão que
seria unânime: o peso que as mulheres carregam ao se sentirem mais homens do
que mulheres. Essa foi a nossa grande “coincidência” no grupo de mulheres que
se conheceram ontem. Todas elas carregam o “peso” de ser o homem que dizem ser.
Essa é apenas a orelha de um
livro que escreveremos juntos. Mas as histórias, ainda não de fato contadas,
deixam escapar um furtivo brilho. Talvez a luz transparente de lágrimas que
ainda correrão. Ou a luz que se acumula sob a crosta de que são formados nossos
rostos provisórios, que se desnudarão aos poucos, com o tempo, com a Magia que
se faz presente em momentos prenhes. Venha de onde vier, um raio de luz sempre
orna a escuridão. Apurar os sentidos e percebê-lo faz parte da abertura de um
rito que evoca a Alma.
Abismos, buraco negro, portal,
gota de sangue, vulva: mulheres escolhem imagens interessantes para traduzir
seu universo singular. Mulheres pintam buracos negros de amarelo e juram que
ali há luz, no fim. No fundo, debatem-se entre a esperança que colhem no Manual
da Felicidade e a escuridão que evitam atravessar, temerosas de sua própria
natureza feminina, feita de penumbras e visões. Mulheres temem ser mulheres.
Renderam-se à fantasia de que só a luz solar pode revelar. Não sabem, ainda,
que as sombras que envolvem a Lua são vidas que desabrocharão revestidas pelo
tule do Mistério. E assim serão. Porque essa é a essência do feminino.
Uma mulher, apenas uma – a mais
nova de todas –, resiste em dar nome ao que “pesa, fere e dói”, invisível e
impalpável. “É algo aqui...”, diz ela, espalmando a mão no coração. “Mas eu não
sei o que é!", explica. “Uma dor”, tenta ela dizer; mas acaba dizendo que não,
que não era uma dor real. E fico
pensando como deve ser difícil para muitas mulheres traduzirem suas sensações,
seus sentimentos, seus anseios mergulhados nos destroços de suas subjetividades
destruídas. Sim, há dores que não doem. Mas são dores doídas. Reais. Nenhum
aparelho detectará nada, nenhum medicamento atuará sobre essa espécie de dor
que não dói, mas que é doída. Muitas mulheres sentem no coração o peso de um
evento futuro. Captam, como radares, sinais distantes. Lagrimejam uma tristeza
que não é só sua. Estacam, de forma precisamente técnica, o sangue de uma
ferida que se alojou no fundo de um abismo que elas temem descer, simulacro de
seu próprio ventre.
A maioria das mulheres veio
atendendo ao chamado de “trabalhar o feminino”, um chamado clichê que em nada
traduz a essência verdadeira da nossa proposta. Porque “trabalhar o feminino”
não é fazer rituais evocando as deusas, e muito menos propiciar transes onde,
longe de se conhecerem, as mulheres refugiam-se numa imagem muito além do seu
universo, da sua realidade. Prefiro dizer que refletiremos sobre a
subjetividade feminina e buscaremos uma voz genuína para nossas sensações,
emoções, percepções.
Apesar das explicações sobre a
dinâmica de nossos trabalhos, do foco na expressão, na imaginação, houve quem
quisesse descobrir a “resposta certa” para o questionamento do poema de Orides
Fontela. “Não existe uma resposta certa.
Existem muitas, talvez infinitas respostas certas”, alertei. “Toda e qualquer
resposta é certa, é a sua resposta”, reforcei. A busca da “resposta certa” cria
insegurança, inibições, medos. Além do mais, essa fixação na exatidão impede
que a imaginação flua, que a nossa expressão, a mais genuína possível – a depender
do estágio em que nos encontremos no espaço terapêutico –, possa ser
exteriorizada. Trabalhar com Poesia é algo que permite atenuar o medo do erro,
o medo do risco, evitando a cilada de uma direção única para um universo entrecortado por caminhos múltiplos.
O início de um encontro
terapêutico é um momento de escuta profunda das primeiras expressões. O
paciente é como uma casa que já foi reformada, talvez, inúmeras vezes. As
paredes receberam várias camadas de tinta, à medida que a cor da superfície se
desgastou, desbotou. A primeira cor jaz sobre sucessivas camadas de tintas, à
espera de que possa, enfim, mostrar-se tal como é, numa relação íntima com o
cimento e os blocos. O caminho é longo, às vezes, mas a compreensão de que sob
tantas vestes sobrepostas estamos nós, nus, é um estímulo grande a continuar a
caminhada.
Não, eu ainda nada sei desses
universos desconhecidos que existem dentro de cada uma das mulheres que foram
em busca de sua primeira cor. Mas
compreendi que todas elas, no fundo, buscam libertar-se do peso de “serem
homens”. Querem ser mulheres. Não sabem, contudo, o que é ser mulher sem
correr o risco de atravessar portais que sejam apenas imaginários, de
mergulharem no abismo sem levarem uma potente lanterna, de se sentirem julgadas
incapazes, de não corresponderem ao modelo de “mulher independente”. Como
homens que se julgam ser, receiam afundar-se no pântano da paixão e serem,
novamente, submetidas à submissão, à mudez de gerações passadas de mulheres.
Todas as vozes me alcançaram e
delas falarei oportunamente. Neste momento, quero apenas lembrar que sob os espinhos
do cacto esconde-se uma flor delicada e de rara beleza.
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