Gente que inspira

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27 de abr. de 2013

Um passarinho mora dentro de mim





Como poeta de alma, posso falar nos deuses-artesãos que imagino serem os cuidadores dos pequenos e significativos detalhes da minha existência. Eles fazem os arremates, o acabamento, entrelaçam fios importantes da Grande Teia, e vão, pouco a pouco, conduzindo-me ao meu Destino. Não sei bem se isso é crença ou poesia, fé ou delírio poético, mas sei que creio que assim é.

De tempos em tempos, uma palavrinha-semente é soprada para o solo fértil da minha alma, eu a escuto, rego-a como se fosse mesmo uma plantinha e fico atenta para a síntese que ela está trazendo à minha vida. Nos últimos anos, “singularidade” é a palavra que se aninha em mim e insinua-se em cada gesto, cada ação, cada projeto, sonho, desejo. As palavras-sementes não nos chegam à toa. Têm a ver com nossa história de vida e se apresentam sob diversas formas, ao longo da vida, até que tenhamos condições de decifrar a mensagem da Alma.

Nunca fui convencional, sempre duvidei do óbvio, acreditava, ainda na infância, que havia um dialeto só meu, esquecido por algum motivo que eu desconhecia, e sabia que, mais cedo ou mais tarde, iria querer recuperá-lo. Os caminhos tentados foram vários, porque há que se procurar, sempre, o seu próprio caminho. De alguma forma, a tal da “singularidade” passava roçando por mim e eu ainda receava olhar sua face. Um dia olharia. Um dia olhei.

Hoje sou, formalmente, uma terapeuta. Preparei-me tecnicamente para isso. Digo tecnicamente, porque um cuidador de almas nasce cuidador de almas. Os instrumentos que utilizará podem ser muitos. Ou nenhum, se não descobrir o que significa a ferida sangrando invisível e profundamente e ensinando-lhe o que é dor, o que é amor, o que é compaixão. Eu nunca soube exatamente qual seriam os meus instrumentos. Sabia, sim, que precisava escutar e traduzir a linguagem do sangue escorrendo nas cavernas da minha alma. Escutar-me. Cuidar de mim. E foi com a palavra, essa amiga íntima com a qual sempre entro em desavença, que comecei a minha jornada. Terapias nas quais a palavra era o instrumento principal. Psicanálise, Psicodrama, Psicologia analítica, xamanismo, PNL, enfim, muitas buscas, que foram elucidando-me para mim mesma.

Mas faltava algo. Por mais que me grudasse à palavra, que a enaltecesse, havia lacunas que a palavra não supria. Seria o meu dialeto esquecido? Foi quando encontrei a Arteterapia. Será? – pensei... Mas os tais dos deuses-artesãos, desse meu delírio poético, foram me conduzindo a ela. Arteterapia cura mesmo? – muitos, que ainda desconhecem o que seja exatamente a Arteterapia me perguntam. Resposta: não! Nada cura ninguém. O que entendo por cura, no sentido profundo da palavra, seria algo como a iluminação, a perfeição. E a perfeição não existe. Aliás, a ânsia de perfeição chega a ser patológica.

Mas, se a Arteterapia não cura, o que ela faz? E, outra dúvida: submeter-se à Arteterapia é fazer arte? Posso sozinho fazer esse caminho, pintando, dançando, escrevendo, desenhando...?

Posso falar da minha experiência particular com a Arteterapia. Não, eu não acredito em caminhos únicos. Acredito na “singularidade” de cada pessoa e em caminhos que se ajustem mais ou menos ao que cada um de nós somos. Na minha vida, a Arteterapia veio como o caminho ideal. A sensibilidade de minha alma é aquela sensibilidade dos artistas. O dialeto que eu procurava e do qual me julgava esquecida não era necessariamente um dialeto. Há vivências, sentimentos, emoções, dores, feridas, percepções que não podem ser definidas com palavras. Para alguns, ressalto sempre. E aí é que entra a Arteterapia. E foi aí que se deu a grande surpresa em minha vida: falar através de diversas modalidades artísticas, sem que fosse necessário ter conhecimento prévio de técnicas, sem preocupações estéticas e, o mais importante, travando um diálogo lúdico, maravilhoso, com a minha criança interna.

As várias modalidades artísticas servem a vários propósitos. Todas elas são capazes de fazer ponte com esse universo misterioso, escuro, chamado inconsciente. E cada modalidade ajusta-se melhor a determinado fim, o que exige do arteterapeuta o conhecimento da alma, a vivência e o amadurecimento que desvelarão, pouco a pouco, os véus que recobrem as feridas escondidas. O inconsciente fala-nos através de símbolos, de imagens simbólicas, que se projetam na colagem, na modelagem, na pintura, no desenho, na assemblage e em tantas outras modalidades utilizadas pela Arteterapia.

É uma terapia suave. A palavra está sempre presente, porque a palavra é indispensável. Mas a magia das auto-revelações acontece mesmo com a criação. Eu, que já vinha de outras terapias que priorizavam a palavras, que trazia as lacunas do indizível – mesmo através das associações livres, dos atos falhos e de tantos outros recursos válidos e que me auxiliaram bastante –, pude, finalmente, dizer o indizível através da expressão artística. Reconhecer no processo do criar muito do que era em mim conflitos, medos, impossibilidades...

A vivência que tive como professora de Redação por alguns anos mostrou-me que não haveria técnica que fizesse com que os alunos a caminho da Universidade aprendessem a escrever. Porque não sabiam imaginar. Porque vivemos uma crise muito grave de falta de imaginação. Porque a chamada “realidade” não nos dá muitas possibilidades de voo. Passei por sustos enormes vendo alunos com uma coleção de palavras dadas por professores, tentando inseri-las no texto que nem nascia. Outros, com régua, medindo o tamanho do texto, orientados também por professores. E ninguém sabia mais imaginar, como já souberam um dia, antes de serem enquadrados na “realidade”.

A Arteterapia desperta a criança entorpecida dentro da gente. Abre os porões onde muitas foram trancafiadas. Retira a mordaça de tantas outras. Convida e estimula cada um de nós à expressão singular, sem julgamentos, sem avaliações estéticas. E, podem acreditar, revela facetas nossas das quais não nos dávamos conta. Não sabíamos. Desconhecíamos. Além disso, é muito gratificante materializar, em forma de arte, um conflito, um medo, um anseio, uma dor até então desconhecida. O resultado disso mais direto é sermos apresentados à nossa essência verdadeira. É olharmos uma criação e, pasmos, dizermos: “Mas então era isso que me fazia recear dar um passo novo na minha vida? Era isso que impedia que eu me tornasse mais flexível? Era isso que me causava insônia?  Não raras vezes, perguntamos: “Eu fiz isso? Fui eu mesmo?”.

Nossos fantasmas invisíveis vão ganhando forma. Às vezes são de barro, de argila, esse material ancestral que pode ajudar a materializar anseios, feridas primitivas. Às vezes os fantasmas cantam um canto todo seu, que vem de um bosque esquecido de sua infância, e você se vê passarinho, a dizer coisas que só os passarinhos entendem, mas que fazem com que os humanos ouçam e comecem a compreender que você é um pássaro. Outras vezes, os fantasmas projetam-se em aquarela, multicoloridos ou negros, e você dialoga com eles. E a gente não tem medo de ser arte. Não tem medo de ser vísceras e sangue, nuvens ou água.

Durante a formação, vivi a experiência do canto da minha alma. Eu não sabia quem cantava em mim, mas era eu. Nunca ouvira, de fato, aquela voz, aqueles sons. Os colegas emocionaram-se, houve quem chorasse até. Mas, eu, com minha alma poética, pensei: um passarinho mora em mim! E fiquei feliz. E descobri que é preciso conhecer todas as vozes que nos habitam.

O sonho de realizar a oficina Sonhar com as Mãos é antigo. Mas antes eu precisava dar forma artística a todos os meus fantasmas. As oficinas estão a caminho. Será um espaço onde, juntos, reaprenderemos a imaginar, recuperaremos a nossa singularidade, teceremos sonhos com as mãos. As imagens oníricas ganharão forma. Poderemos confeccionar com as mãos os sonhos, soprar e dar-lhe vida real.  

Nós somos singulares, por mais que todo um sistema tente fazer com que nos tornemos robôs, criaturas em série, vestidos iguais, penteados iguais, repetindo as mesmas palavras e consumindo sempre mais e mais à procura da felicidade. A felicidade só se aproxima de quem busca ser o que verdadeiramente é. E para sabermos quem somos é preciso libertar a imaginação.

Fazer arte não é arteterapia. Arteterapia é utilizar a arte como ponte para o nosso mundo desconhecido. O profissional da Arteterapia é um facilitador do processo, preparado para reconhecer e ajudar a decifrar cada símbolo que emerge à luz através da criação. Antes de tudo, o Arteterapeuta é um profissional que ama o que faz. Que ama as pessoas e não teme a singularidade de cada um.

22 de abr. de 2013

A poesia na Arteterapia: o verbo em delírio










“A poesia é o que permite o real, ainda que hoje o real a oculte, entulhado na rotina dos sistemas”.  A afirmação do poeta e contista Márcio André é contundente e pode parecer inverossímil para os que têm pouca ou nenhuma intimidade com a poesia. Há os que separam poesia e arte, como se a poesia não fosse arte, como se não fosse ela uma linguagem primordial, como se sua origem não se confundisse com a própria origem da linguagem. O músico e poeta Arnaldo Antunes, em um artigo sobre o tema, afirma que “talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia”, ou questionar a origem do discurso não poético.

Costumam me perguntar se, no contexto da Arteterapia, a poesia é considerada arte. Afirmo que sim, mesmo reconhecendo que ela ocupa um lugar muito discreto, apesar de ser uma linguagem artística primordial. Felizmente, na minha formação em Arteterapia ela esteve presente, e pude, assim, confirmar o que a experiência de vida já me mostrara, uma vez que a poesia chegou cedo na minha vida.

Devo confessar que o que li a respeito da poesia no contexto arteterapêutico, durante a formação, estava bem aquém do potencial curador da poesia, talvez porque faltasse ao autor uma intimidade maior com esse gênero literário e não tenha podido olhá-lo com uma percepção mais ampla. Mas a verdade é que a poesia é uma ponte maravilhosa entre o mundo visível e o mundo invisível e, como todas as modalidades artísticas, tem o poder de tocar o intangível, o invisível.

Arnaldo Antunes sugere que talvez a poesia possa ser considerada a infância da linguagem, “antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando duas metades – significante e significado”. Esse ponto de vista é muito interessante e pertinente. Quando “poetizamos”, libertamo-nos da percepção linear que vamos adquirindo ao longo da vida. Colocamos em funcionamento o lado direito do cérebro, responsável pela criatividade, pela intuição, pela expansão do olhar.

Podemos fazer um paralelo entre a poesia e os desenhos infantis, pré-alfabetização, quando a espontaneidade e a singularidade são marcas libertadoras da alma. Uma criança, nos seus primeiros anos de vida, antes de ser alfabetizada, desenha uma árvore de copa azul e um sol verde com pequenas flores vermelhas. À medida que as “regras” lhe vão sendo inseridas, a copa da árvore torna-se, invariavelmente, verde e o sol amarelo. Ponto. Mas, então, vêm os artistas, vêm os poetas, e “enlouquecem o verbo”, como diria o poeta Manoel de Barros. Os poetas trazem a insanidade para as palavras, revelam o que a palavra reta não sabe revelar. Trazem do inconsciente símbolos de uma riqueza incomensurável para o auto-reconhecimento.  Retratam-se e ao mundo tendo por base outra ou outras realidades. Rosas azuis, cílios falantes, sol com rubores na face, xícaras falantes, e instala-se, assim, novamente a infância da linguagem, revelando feridas, reacendendo esperanças.

Costumo sempre lembrar que a poesia foi o meu “primeiro deus”.  Eu, que descria do deus que me foi ensinado e tinha dúvida sobre a existência de algo que transcendesse a existência humana, encontrei na poesia, ainda na pré-adolescência, aspectos metafísicos, elementos que transcendiam o mundo fático. Ali havia algo sobre o qual eu me debruçava reverentemente. O indizível – que já era causa de tantas das minhas precoces angústias – estava dito ali. Aquilo me acalmava. Aquilo impregnou meu olhar. Aquilo tomou minha alma, minhas mãos e foi se dizendo aos poucos no papel branco, o qual eu mirava, serena, pensando depois: “O que eu precisava dizer foi dito”. Ainda que ninguém entendesse. Porque havia em mim um tanto de coisas sem nome, um tanto de angústias sem face, um mundo bastante diferente daquele outro onde eu precisava existir.  

Ilya Prigogine, prêmio Nobel de física, afirmou que a realidade é somente uma das realizações do possível. E o poeta Marcos André reafirma isso ao citar que “a ciência explica que a lua é um satélite. Mas esta não é a lua, é uma das facetas da lua. A lua é isso e muito mais”. Muitos cientistas já se dão conta hoje do absurdo que é a realidade.

Mas é possível utilizar a poesia na arteterapia? Sim, é. A leitura de um poema pode fazer emergir memórias adormecidas, através de símbolos, pode ajudar a dar forma àquilo que não sabemos ao menos nomear, pode expandir a consciência, fazer que retornemos à infância, nos seus aspectos mais essenciais para o equilíbrio, a saúde, quais sejam, a espontaneidade, a singularidade, a criatividade, a essência do que verdadeiramente somos, da qual nos perdemos.

É possível criar poesia, escrever, ao longo do processo arteterapêutico? Sim, também. A poesia transmite níveis de comunicação muito acima da literalidade. Trabalhar com poesia é trabalhar com o imaginário. Para quem nunca tentou, é fácil começar com associações livres, sem recear o “absurdo”, o “ilógico” Há muitas outras técnicas que, associadas à poesia, descortinam partes significativas do universo simbólico do inconsciente.

Um dos poetas, na minha opinião, que mais demonstram o quanto o fazer poético pode ser curador, remetendo-nos ao mito da origem, é Manoel de Barro. Em sua poesia, sempre está, mesmo nas entrelinhas, a necessidade do “desaprender” para alcançarmos a essência do que somos nós. O mito primordial da origem pulsa na poesia de Barros. E segundo Elíade, “ o retorno à origem permite um novo nascimento místico, o qual conduz à possibilidade de renovar e regenerar a existência daquele que empreende sua busca”. Na poesia de Barros, a origem, a perfeição, está na criança. Não é, portanto, por acaso que entendo a Arteterapia como uma abordagem que busca curar as feridas mais profundas, escondidas, cuja origem, muitas vezes, encontra-se na passagem da infância, com inúmeras possibilidades de realidade, para o adulto, que caminha reto e se perde dos potenciais criativos no meio do caminho. E para terminar essa prosa, Manoel de Barros:




“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.”

20 de abr. de 2013

A onça e a arteterapia



Eu com um índio fulni ô







Não há livros e nem conhecimentos que sejam mais importantes do que a experiência vivida. Demorei, talvez, a verbalizar isso com todas as letras. Hoje é uma verdade, no meu entendimento, incontestável. Acho que talvez por isso tenha escolhido meus médicos, minhas amizades olhando nos olhos. Lendo pelos vasos fininhos dos olhos quantos caminhos já tinham percorrido. O que sentiram, o quanto sofreram e o quanto o sofrimento alheio os sensibiliza.

Eu conheci a vida pelos livros. Ela me foi apresentada, muitas vezes, em papel bíblico, marcador de seda, em volumes de capa dura e dourada. A vida acabava na última página e logo recomeçava, noutro livro. De certa forma foi bom e me preservou de muitas ciladas da vida. Mas mais tarde, quando comecei a substituir os personagens dos livros por pessoas da vida real, descobri que da “realidade” pouco sabia. E entendi que é preciso viver para conhecer a vida e as almas. E fui viver.

Ao decidir-me pela formação em arteterapeuta, já conhecia as inúmeras feridas da minha alma, muitas que se curaram, outras talvez apenas se fingem de cicatrizes, mas jorram repentinamente o sangue escuro, aprisionado. Não foi tão difícil entender que que tem o destino de curador, ou cuidador, nasce profundamente ferido, ainda que não saiba. E terá o mesmo destino de Quíron: curará, mas em si mesmo haverá uma ferida que jamais cicatrizará e que faz do terapeuta um consciente terapeuta.

Eu nada tenho contra os psicólogos, terapeutas que tenham uma religião. Mas confesso que me sinto mais livre e confortável não tendo nenhuma. Hoje vou a festas de caboclos, de orixás, a rituais indígenas, meditação budista, enfim, e vou enriquecendo minha alma com experiências que ajudarão outras almas.

Ontem havia dois eventos nos quais eu deveria ir: uma mesa-redonda com Arteterapeutas de vários estados, bons livros à venda, aquele clima de fortalecimento que dá essa junção de pessoas que escolheram o mesmo tão lindo caminho de vida; mas havia também, numa reserva indígena, próximo a Salvador, um ritual que chamavam de “a dança da onça”, que acontece anualmente no Dia do índio.  Deixei que minha alma decidisse.  E minha alma me disse que estou vivendo a fase de aprendizados vivenciais. Naquele momento, o aprendizado seria maior no Ritual dos índios.

Arte foi o que não faltou: pinturas corporais, faciais, cocar, colares, lanças e muitos outros objetos. A dança – que me pareceu guerreira – era mais do que uma simples dança. Era um ritual também, e a mim parecia que servia também como espécie de catarse, com gritos e urros. Dancei, pintei o rosto antes de sair, não resisti, como não resisto nunca, ao artesanato indígena. Matei saudade de amigos índios que não via há tempos. Observei, na arte dos índios, os símbolos, no coração uma reverência pela Natureza e pela arte, a importância dos quatro elementos na sua simbologia.

Prestei atenção na alegria que vinha durante a dança-ritual, a força e a união. Fazer arte no próprio corpo para reverenciar um deus, para rituais de cura, para a paz e para a guerra. Embora os índios nordestinos tenham, na sua maioria, se afastado da sua cultura, o líder e morador da reserva onde aconteceu o ritual, Wakai. realiza um trabalho de recuperação e fortalecimento dos costumes ancestrais e da sua língua de origem.

Também lembrei que já fui tratada e curada por um índio, num ritual que é conhecido como “resgate da alma”, e então acreditei que aqueles homens, remanescentes de outros mias sábios, de alguma forma tinham uma sabedoria só deles.

Eu continuo entendendo que o nível de cura que se dá na terapeuta é a percepção da localização de sua grande ferida. A minha é uma ferida primitiva, e só indo ao encontro dela para resgatar memórias importantes, encontrar respostas, como as tantas que encontrei, descobrir facetas selvagens vitais, elementos da minha natureza íntima, que são canais de cura.

Mesmo terapeuta, jamais deixamos de ser pacientes de nós mesmos, principalmente, para aprender sobre a vida, que se renova sempre. E o primitivo vitaliza, mas os que têm a ferida sangrando no mais fundo da alma.

18 de abr. de 2013

Arteterapia: a cura da ferida primitiva





Há dores cuja origem remonta a tempos antigos, trazidas ancestralmente e que se escondem sob os véus de outras dores. De alguma forma, apagamos essas dores da memória e focamos outras dores, mais complexas e recentes na história humana. Minha caminhada arteterapêutica mostrou-me a origem da dor que se irradiava de algum lugar profundo, invisível e, quase, inalcançável.

A escolha da formação em Arteterapia foi consequência da junção de muitas sincronicidades, muitas coincidências significativas, de modo que não pude ignorá-las, ainda que o quisesse. Arte e Psicologia sempre foram paixões íntimas e nunca assumidas claramente. E, em minhas terapias anteriores, o verbo era o senhor, a palavra era soberana, e o dialeto secreto da minha alma, esquecido, não podia traduzir um mundo de coisas sem nomes, de sensações desconhecidas, uma linguagem que eu já não sabia utilizar.

Os cursos de Arteterapia atraem muitas pessoas da área de plásticas, principalmente, o que, em princípio, parece ser natural. Eu não viera de nenhum grande elo com as artes, senão a poesia, embora sentisse intimidade com muitas delas. E, assim, cheguei ao curso virgem, desconhecendo técnicas, inaugurando muitas modalidades das artes.

E isso foi, ao meu ver, importante e imprescindível para o meu processo. Como eu não tinha praticamente nenhuma intimidade com as técnicas artísticas, decidi que minhas criações seriam, tanto quanto possível, guiadas pelos meus instintos. Realizava com as vísceras, muitas vezes, as tarefas solicitadas.

 Por alguma razão desconhecida, fui conduzida ao universo primitivo e me atraía por tudo que fosse natural, cru, bruto, na sua forma mais primitiva. Aos poucos fui me dando conta de que a expressão que minha alma ditava era uma expressão primitiva. Entendi que a ferida de minha alma ocultava-se em território interior longínquo. E era inevitável que eu caminhasse para ele, sem medo.

Não poderia acreditar, jamais, que todos precisassem fazer o mesmo caminho. Cada caminhada é singular, cada ferida queima em camadas diferentes da alma. A minha ferida era primitiva. Era o meu Feminino que sangrava fortemente. Era a mãe que precisava ser recolocada em seu devido patamar. Era minha natureza selvagem que queria voz – a voz que lhe fora roubada inadvertidamente há séculos e séculos e séculos. Era essa a “linguagem” que procurava o canal de expressão que eu, até então, não encontrara.

Utilizei diversas modalidades artísticas, identifiquei-me mais com algumas, menos com outras, mas todas foram pontes importantes para ajudar a decifrar meu universo simbólico, os conteúdos da cidade escura e desconhecida do inconsciente.

Sempre utilizava os materiais mais naturais que encontrava. A figura que modelei em argila – metade mulher, metade animal – praticamente formou-se sozinha em minhas mãos e revelaram que ainda havia uma metade minha que precisava ter patas, uivar, rosnar ou emitir qualquer ruído animal. A consciência de que fui profundamente ferida na minha dimensão mais primitiva foi aumentando. A arte expressa muitos de nossos aspectos inconscientes. Revela-nos, quando a palavra, sozinha, encontra seus limites e, muitas vezes, vela em vez de desvelar.
Muitos de nós, colegas na formação em Arteterapia, dominavam alguma técnica artística. Minha intimidade era meramente com as palavras e elas se mostraram impotentes inúmeras vezes.

Com a tinta, aprendi a ter mais confiança na magia da vida. Se escorria um vermelho, acidentalmente, sobre o rosto que eu tentava definir, logo eu descobriria que havia um sentido mais profundo. Algo sangrava em minha face. Minha biografia psíquica podia ser revelada em cores, em movimentos, em recortes e colagens. Compreendi que, qualquer que fosse a modalidade artística, o clamor de minha ferida seria ouvido e as mãos, intuitivamente, escolheriam o caminho das pedras mais brutas para percorrer, quando não a floresta, a mata virgem, ou a escuridão da noite com todos os seus olhos invisíveis.

A formação para quem se propõe a trabalhar com almas é contínua e interminável. As deusas tecelãs unem os fios da vida de tal forma que começamos a entender o que é fundamental, imprescindível, inevitável. Eventos sincronísticos, muitos, levaram-me à confirmação de que eu precisava olhar para trás. Não para um quilômetro atrás, mas para estradas intermináveis que me guiariam de volta ao meu primitivo, onde se encontrava a ferida que precisava ser curada. O mito de Quíron, o curador ferido, ganhou feições mais primitivas nos meus sonhos. Vinha como Obaluaê, o curador das religiões africanas, e num momento posterior, ainda vivenciando o processo, minha pele abriu-se em erupções repentinamente, que viravam feridas, mas que desapareceram tão misteriosamente como chegaram.

Através de minhas criações na formação em Arteterapia, pude dar forma a muito da minha energia psíquica e nomes ao que parecia inominável. A falta de preocupação com a estética das criações e a consciência da importância de cada etapa do processo criativo, além do resultado final, são mudanças que acontecem naturalmente no processo arteterapêutico. Expressar-se torna-se, assim, muito mais significativo do que os resultados que possamos alcançar. A originalidade de cada um emerge, como se ainda fôssemos crianças e ainda não tivéssemos sido moldados para ser igual a todos os outros.

A linguagem arteterapêutica é semelhante às imagens dos sonhos. Nosso inconsciente – cuja linguagem é essencialmente simbólica – encontra, na Arteterapia, o canal ideal de expressão. E o arteterapeuta, facilitador do processo, vai ajudando a traduzir a linguagem de símbolos expressos na criação, tenha ela a modalidade que tiver.

Verdade também é que acontece uma alquimia quando nos expressamos arteterapeuticamente. De repente, minha criação é uma metáfora do conflito inconsciente, é a materialização de uma energia, é o resultado da minha não-passividade diante do meu próprio processo de crescimento, autoconhecimento, individuação. Eu sou sujeito da minha história e posso interferir em qualquer pagina do enredo. A arte, a criação, é um algo interno que ganhou forma e que, portanto, está diretamente ligado aos nossos conflitos internos, nossos complexos, nossos clamores. Ao tomarmos consciência deles através da expressão artística, damos início, naturalmente, a muitas transformações.

Há relativamente pouco tempo, coisa de alguns anos pra cá, fui percebendo que as mulheres sofriam de dores às quais não sabiam nominar.  Muitos grupos e muitos profissionais, de diversas linhas terapêuticas, começaram a trabalhar com o universo feminino, atentos para as feridas da alma, para os conflitos inconscientes que muitas viviam.

Não sei quantos se dão conta, entretanto, de que é preciso curar feridas primais, escondidas sob várias outras feridas, que de alguma forma derivam das outras. Porque houve um tempo em que as mulheres foram deusas. Conheciam seu poder e tinham seus ritos respeitados. A mulher e a lua eram irmãs gêmeas. Marés, lua, Mulher, Natureza. A mulher já foi inteira e fragmentou-se à medida que caminhou para o que se chama de “evolução”, dentro de uma perspectiva patriarcal. Curar a ferida primordial é indispensável para se pensar na possibilidade de curas em outros níveis.

Trabalhar a ferida primitiva da mulher é um projeto que esteve, pouco a pouco, se formando na minha caminhada arteterapêutica.  E vai ganhando corpo a cada dia, enquanto eu própria vou acolhendo em mim, com amor e respeito, a minha ancestralidade.