Há dores cuja origem remonta a
tempos antigos, trazidas ancestralmente e que se escondem sob os véus de outras
dores. De alguma forma, apagamos essas dores da memória e focamos outras dores,
mais complexas e recentes na história humana. Minha caminhada arteterapêutica
mostrou-me a origem da dor que se irradiava de algum lugar profundo, invisível
e, quase, inalcançável.
A escolha da formação em
Arteterapia foi consequência da junção de muitas sincronicidades, muitas
coincidências significativas, de modo que não pude ignorá-las, ainda que o
quisesse. Arte e Psicologia sempre foram paixões íntimas e nunca assumidas
claramente. E, em minhas terapias anteriores, o verbo era o senhor, a palavra
era soberana, e o dialeto secreto da minha alma, esquecido, não podia traduzir
um mundo de coisas sem nomes, de sensações desconhecidas, uma linguagem que eu
já não sabia utilizar.
Os cursos de Arteterapia atraem
muitas pessoas da área de plásticas, principalmente, o que, em princípio,
parece ser natural. Eu não viera de nenhum grande elo com as artes, senão a
poesia, embora sentisse intimidade com muitas delas. E, assim, cheguei ao curso
virgem, desconhecendo técnicas, inaugurando muitas modalidades das artes.
E isso foi, ao meu ver,
importante e imprescindível para o meu processo. Como eu não tinha praticamente
nenhuma intimidade com as técnicas artísticas, decidi que minhas criações
seriam, tanto quanto possível, guiadas pelos meus instintos. Realizava com as vísceras,
muitas vezes, as tarefas solicitadas.
Por alguma razão desconhecida, fui conduzida
ao universo primitivo e me atraía por tudo que fosse natural, cru, bruto, na
sua forma mais primitiva. Aos poucos fui me dando conta de que a expressão que
minha alma ditava era uma expressão primitiva. Entendi que a ferida de minha
alma ocultava-se em território interior longínquo. E era inevitável que eu
caminhasse para ele, sem medo.
Não poderia acreditar, jamais,
que todos precisassem fazer o mesmo caminho. Cada caminhada é singular, cada
ferida queima em camadas diferentes da alma. A minha ferida era primitiva. Era
o meu Feminino que sangrava fortemente. Era a mãe que precisava ser recolocada
em seu devido patamar. Era minha natureza selvagem que queria voz – a voz que
lhe fora roubada inadvertidamente há séculos e séculos e séculos. Era essa a “linguagem”
que procurava o canal de expressão que eu, até então, não encontrara.
Utilizei diversas modalidades artísticas,
identifiquei-me mais com algumas, menos com outras, mas todas foram pontes
importantes para ajudar a decifrar meu universo simbólico, os conteúdos da
cidade escura e desconhecida do inconsciente.
Sempre utilizava os materiais
mais naturais que encontrava. A figura que modelei em argila – metade mulher,
metade animal – praticamente formou-se sozinha em minhas mãos e revelaram que
ainda havia uma metade minha que precisava ter patas, uivar, rosnar ou emitir
qualquer ruído animal. A consciência de que fui profundamente ferida na minha
dimensão mais primitiva foi aumentando. A arte expressa muitos de nossos
aspectos inconscientes. Revela-nos, quando a palavra, sozinha, encontra seus
limites e, muitas vezes, vela em vez de desvelar.
Muitos de nós, colegas na formação
em Arteterapia, dominavam alguma técnica artística. Minha intimidade era
meramente com as palavras e elas se mostraram impotentes inúmeras vezes.
Com a tinta, aprendi a ter mais
confiança na magia da vida. Se escorria um vermelho, acidentalmente, sobre o
rosto que eu tentava definir, logo eu descobriria que havia um sentido mais
profundo. Algo sangrava em minha face. Minha biografia psíquica podia ser
revelada em cores, em movimentos, em recortes e colagens. Compreendi que,
qualquer que fosse a modalidade artística, o clamor de minha ferida seria
ouvido e as mãos, intuitivamente, escolheriam o caminho das pedras mais brutas
para percorrer, quando não a floresta, a mata virgem, ou a escuridão da noite
com todos os seus olhos invisíveis.
A formação para quem se propõe a
trabalhar com almas é contínua e interminável. As deusas tecelãs unem os fios
da vida de tal forma que começamos a entender o que é fundamental, imprescindível,
inevitável. Eventos sincronísticos, muitos, levaram-me à confirmação de que eu
precisava olhar para trás. Não para um quilômetro atrás, mas para estradas
intermináveis que me guiariam de volta ao meu primitivo, onde se encontrava a
ferida que precisava ser curada. O mito de Quíron, o curador ferido, ganhou
feições mais primitivas nos meus sonhos. Vinha como Obaluaê, o curador das
religiões africanas, e num momento posterior, ainda vivenciando o processo,
minha pele abriu-se em erupções repentinamente, que viravam feridas, mas que
desapareceram tão misteriosamente como chegaram.
Através de minhas criações na
formação em Arteterapia, pude dar forma a muito da minha energia psíquica e
nomes ao que parecia inominável. A falta de preocupação com a estética das
criações e a consciência da importância de cada etapa do processo criativo, além
do resultado final, são mudanças que acontecem naturalmente no processo arteterapêutico.
Expressar-se torna-se, assim, muito mais significativo do que os resultados que
possamos alcançar. A originalidade de cada um emerge, como se ainda fôssemos
crianças e ainda não tivéssemos sido moldados para ser igual a todos os outros.
A linguagem arteterapêutica é
semelhante às imagens dos sonhos. Nosso inconsciente – cuja linguagem é
essencialmente simbólica – encontra, na Arteterapia, o canal ideal de expressão.
E o arteterapeuta, facilitador do processo, vai ajudando a traduzir a linguagem
de símbolos expressos na criação, tenha ela a modalidade que tiver.
Verdade também é que acontece uma
alquimia quando nos expressamos arteterapeuticamente. De repente, minha criação
é uma metáfora do conflito inconsciente, é a materialização de uma energia, é o
resultado da minha não-passividade diante do meu próprio processo de
crescimento, autoconhecimento, individuação. Eu sou sujeito da minha história e
posso interferir em qualquer pagina do enredo. A arte, a criação, é um algo interno
que ganhou forma e que, portanto, está diretamente ligado aos nossos conflitos
internos, nossos complexos, nossos clamores. Ao tomarmos consciência deles através
da expressão artística, damos início, naturalmente, a muitas transformações.
Há relativamente pouco tempo,
coisa de alguns anos pra cá, fui percebendo que as mulheres sofriam de dores às
quais não sabiam nominar. Muitos grupos
e muitos profissionais, de diversas linhas terapêuticas, começaram a trabalhar
com o universo feminino, atentos para as feridas da alma, para os conflitos
inconscientes que muitas viviam.
Não sei quantos se dão conta,
entretanto, de que é preciso curar feridas primais, escondidas sob várias
outras feridas, que de alguma forma derivam das outras. Porque houve um tempo
em que as mulheres foram deusas. Conheciam seu poder e tinham seus ritos
respeitados. A mulher e a lua eram irmãs gêmeas. Marés, lua, Mulher, Natureza.
A mulher já foi inteira e fragmentou-se à medida que caminhou para o que se
chama de “evolução”, dentro de uma perspectiva patriarcal. Curar a ferida
primordial é indispensável para se pensar na possibilidade de curas em outros níveis.
Trabalhar a ferida primitiva da
mulher é um projeto que esteve, pouco a pouco, se formando na minha caminhada
arteterapêutica. E vai ganhando corpo a
cada dia, enquanto eu própria vou acolhendo em mim, com amor e respeito, a
minha ancestralidade.
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ResponderExcluirClaudinha Antunes BA
ResponderExcluirTaninha,
Testemunhar e compartilhar de tais processos com você foi e tem sido uma experiência de profunda comunhão e cumplicidade.
Só posso dizer mais uma vez OBRIGADA!
Bjo grande, Querida!
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ResponderExcluirFátima Amaral
ResponderExcluirEncontrar-se acima de tudo é o maior dos anseios.
Senti vontade de ter ao alcance nesse momento cores, tintas, para jogar nas paredes..rs
Adorei tua jornada e gosto demais dessa entrega que faz e transmite.
Beijos, prosperidade sempre!!
José Reginaldo
ResponderExcluirtá lindo,estou adorando.beijo
Lara Amaral
ResponderExcluirBonito, Tânia. Realmente, há certas dores que só a arte consegue expor e acalentar em alguns momentos. Às vezes duram para sempre, mas se pode encontrar uma forma mais bonita delas tomarem corpo.
Beijo grande, flor.
Tonho
ResponderExcluirAR...Terapia do entreterapia!
:o)
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Até!
byTONHO
Bonito, Tânia. Realmente, há certas dores que só a arte consegue expor e acalentar em alguns momentos. Às vezes duram para sempre, mas se pode encontrar uma forma mais bonita delas tomarem corpo.
ResponderExcluirBeijo grande, flor.
além da poesia, eu me curo através do desenho e da pintura com giz de cera... esta segunda eu não mostro nem sei por quê! rs... mas me sinto muito leve quando desenho e pinto!
ResponderExcluirAdorei te ler aqui!! Obrigada!!
beijo!