“A poesia é o que
permite o real, ainda que hoje o real a oculte, entulhado na rotina dos
sistemas”. A afirmação do poeta e
contista Márcio André é contundente e pode parecer inverossímil para os que têm
pouca ou nenhuma intimidade com a poesia. Há os que separam poesia e arte, como
se a poesia não fosse arte, como se não fosse ela uma linguagem primordial, como
se sua origem não se confundisse com a própria origem da linguagem. O músico e
poeta Arnaldo Antunes, em um artigo sobre o tema, afirma que “talvez fizesse
mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia”, ou
questionar a origem do discurso não poético.
Costumam me perguntar
se, no contexto da Arteterapia, a poesia é considerada arte. Afirmo que sim,
mesmo reconhecendo que ela ocupa um lugar muito discreto, apesar de ser uma
linguagem artística primordial. Felizmente, na minha formação em Arteterapia
ela esteve presente, e pude, assim, confirmar o que a experiência de vida já me
mostrara, uma vez que a poesia chegou cedo na minha vida.
Devo confessar que
o que li a respeito da poesia no contexto arteterapêutico, durante a formação,
estava bem aquém do potencial curador da poesia, talvez porque faltasse ao
autor uma intimidade maior com esse gênero literário e não tenha podido olhá-lo
com uma percepção mais ampla. Mas a verdade é que a poesia é uma ponte
maravilhosa entre o mundo visível e o mundo invisível e, como todas as
modalidades artísticas, tem o poder de tocar o intangível, o invisível.
Arnaldo Antunes
sugere que talvez a poesia possa ser considerada a infância da linguagem, “antes
que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando duas metades –
significante e significado”. Esse ponto de vista é muito interessante e pertinente.
Quando “poetizamos”, libertamo-nos da percepção linear que vamos adquirindo ao
longo da vida. Colocamos em funcionamento o lado direito do cérebro, responsável
pela criatividade, pela intuição, pela expansão do olhar.
Podemos fazer um
paralelo entre a poesia e os desenhos infantis, pré-alfabetização, quando a
espontaneidade e a singularidade são marcas libertadoras da alma. Uma criança,
nos seus primeiros anos de vida, antes de ser alfabetizada, desenha uma árvore
de copa azul e um sol verde com pequenas flores vermelhas. À medida que as “regras”
lhe vão sendo inseridas, a copa da árvore torna-se, invariavelmente, verde e o
sol amarelo. Ponto. Mas, então, vêm os artistas, vêm os poetas, e “enlouquecem
o verbo”, como diria o poeta Manoel de Barros. Os poetas trazem a insanidade
para as palavras, revelam o que a palavra reta não sabe revelar. Trazem do
inconsciente símbolos de uma riqueza incomensurável para o auto-reconhecimento.
Retratam-se e ao mundo tendo por base
outra ou outras realidades. Rosas azuis, cílios falantes, sol com rubores na
face, xícaras falantes, e instala-se, assim, novamente a infância da linguagem,
revelando feridas, reacendendo esperanças.
Costumo sempre
lembrar que a poesia foi o meu “primeiro deus”. Eu, que descria do deus que me foi ensinado e
tinha dúvida sobre a existência de algo que transcendesse a existência humana,
encontrei na poesia, ainda na pré-adolescência, aspectos metafísicos, elementos
que transcendiam o mundo fático. Ali havia algo sobre o qual eu me debruçava
reverentemente. O indizível – que já era causa de tantas das minhas precoces
angústias – estava dito ali. Aquilo me acalmava. Aquilo impregnou meu olhar.
Aquilo tomou minha alma, minhas mãos e foi se dizendo aos poucos no papel
branco, o qual eu mirava, serena, pensando depois: “O que eu precisava dizer
foi dito”. Ainda que ninguém entendesse. Porque havia em mim um tanto de coisas
sem nome, um tanto de angústias sem face, um mundo bastante diferente daquele
outro onde eu precisava existir.
Ilya Prigogine, prêmio
Nobel de física, afirmou que a realidade é somente uma das realizações do possível.
E o poeta Marcos André reafirma isso ao citar que “a ciência explica que a lua é
um satélite. Mas esta não é a lua, é uma das facetas da lua. A lua é isso e
muito mais”. Muitos cientistas já se dão conta hoje do absurdo que é a
realidade.
Mas é possível
utilizar a poesia na arteterapia? Sim, é. A leitura de um poema pode fazer
emergir memórias adormecidas, através de símbolos, pode ajudar a dar forma àquilo
que não sabemos ao menos nomear, pode expandir a consciência, fazer que
retornemos à infância, nos seus aspectos mais essenciais para o equilíbrio, a
saúde, quais sejam, a espontaneidade, a singularidade, a criatividade, a essência
do que verdadeiramente somos, da qual nos perdemos.
É possível criar
poesia, escrever, ao longo do processo arteterapêutico? Sim, também. A poesia
transmite níveis de comunicação muito acima da literalidade. Trabalhar com
poesia é trabalhar com o imaginário. Para quem nunca tentou, é fácil começar
com associações livres, sem recear o “absurdo”, o “ilógico” Há muitas outras técnicas
que, associadas à poesia, descortinam partes significativas do universo simbólico
do inconsciente.
Um dos poetas, na
minha opinião, que mais demonstram o quanto o fazer poético pode ser curador,
remetendo-nos ao mito da origem, é Manoel de Barro. Em sua poesia, sempre está,
mesmo nas entrelinhas, a necessidade do “desaprender” para alcançarmos a essência
do que somos nós. O mito primordial da origem pulsa na poesia de Barros. E
segundo Elíade, “ o retorno à origem permite um novo nascimento místico, o qual
conduz à possibilidade de renovar e regenerar a existência daquele que
empreende sua busca”. Na poesia de Barros, a origem, a perfeição, está na
criança. Não é, portanto, por acaso que entendo a Arteterapia como uma
abordagem que busca curar as feridas mais profundas, escondidas, cuja origem,
muitas vezes, encontra-se na passagem da infância, com inúmeras possibilidades
de realidade, para o adulto, que caminha reto e se perde dos potenciais
criativos no meio do caminho. E para terminar essa prosa, Manoel de Barros:
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.”
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.”
Assim como todas as regras sociais que aprendemos, e que na maioria das vezes não atendem a nossa demanda e nem dizem do que somos, a poesia é a antiregra(tem hífen?). É o dizer-se mesmo na incompletude que faz dar prosseguimento à sua existência, ao delírio que constitui cada ser na sua singularidade.A poesia é a verdade de cada um,a expressão livre da alma...e é muitas e muitas coisas mais!amei o texto!
ResponderExcluira poesia é minha capa mágica.
ResponderExcluirbeijo carinhoso,
querida Tânia.
a origem, o mito, a palavra: tudo nos converge
ResponderExcluirbeijo