Gente que inspira

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25 de mai. de 2014

A Morte em miniatura







O Jogo de Areia é um método junguiano não verbal, um procedimento psicológico de acesso ao inconsciente muito eficaz e lúdico por essência, visto que são utilizadas miniaturas de diversas categorias, com quais são montadas, pelo paciente, cenas reveladoras. Mas o tema central aqui não é o Jogo de Areia em si.  Este é um relato que aborda um tema de um modo geral evitado pelas pessoas: a Morte!
Não é novidade nenhuma que a Morte foi praticamente banida de nossas vidas, apesar do inevitável encontro com ela a qualquer momento. A maioria dos doentes morre no ambiente frio de um hospital. O velório – realizado comumente, no passado, na sala de estar das casas – hoje é realizado nas salas dos cemitérios reservadas para isso. E, assim, vamos colocando a Morte cada vez mais longe de nós. A arte tumular, com toda a sua riqueza simbólica, também foi desaparecendo entre nós. E se perdeu, assim, a poesia da Morte.
Ao começar a minha coleção de miniaturas para o Jogo de Areia, tinha em mente encontrar logo a pequena urna funerária, peça imprescindível, no meu entender, justamente pela pluralidade de situações que ela pode representar. Porque morrer não é só um evento biológico; morremos muitas vezes no decorrer de uma só vida; a cada transformação profunda; a cada passagem de fase; a cada perda. As pequenas mortes nos preparam para a Passagem final. Ou pelo menos deveriam.
Demorei um pouco para adquirir a peça tão essencial da minha coleção. Não encontrava em lugar nenhum e, a cada pergunta sobre ela, nos vários lugares por onde passei, via caras de espanto, feições contraídas, estranhezas. E eu só estava procurando por uma miniatura, como tantas outras, assim eu pensava.
Acredito muito na Vida que nasce da Morte. Ela parece mais plena. E insisti na busca do pequeno ataúde. Queria que fosse uma peça feita com arte e delicadeza. Busquei através da internet, em vão. Por pura coincidência, encontrei no facebook a página de um artista genial que trabalha com perfeitas miniaturas de móveis. Anotei o e-mail e enviei-lhe uma mensagem. Sabia que miniaturas artísticas com aquela qualidade não seriam baratas, como outras miniaturas que compramos em vários lugares. Por outro lado, também o artista nunca havia feito a miniatura de um caixão. Mas ele topou o desafio e uma pessoa muito querida quis me dar o presente.
Wilson Rodrigues, o artista paulista, contou-me que a peça fez o maior sucesso entre amigos e parentes. Falou também que, ao chegar aos correios para pesar a miniatura que enviaria via sedex, as moças que lá estavam não queriam tocar na miniatura. Mas felizmente ela chegou, junto com um brinde do artista, a adorável miniatura de uma cadeira.
Não, a grande maioria das pessoas não vê beleza na pequena peça artística, feita com esmero, com perfeição. Na mais recente aula do Jogo de Areia, com a competentíssima professora Aicil Franco, levei a peça para mostrar às colegas. Houve quem não quisesse tocar. Mas o reconhecimento da perfeição da miniatura foi unânime. Isso ninguém pode negar.
Há uma espécie de rito para “batizar” as miniaturas adquiridas, que se dá montando uma cena com ela. Eu ainda não havia feito, e tratei de dar vida ao meu caixãozinho tão especial. A imagem está aí. Instintivamente, coloquei na cena uma miniatura de uma mulher grávida. Porque toda morte – biológica ou não – traz a vida.
Esse é mais um recurso utilizado também na Arteterapia, e os resultados são surpreendentes.
Sugiro também a visita à página do artista miniaturista Wilson Rodrigues, no facebook. É De Jó miniaturas.


4 de mai. de 2014

Mulher: flor de cacto (Grupo Arteterapêutico Feminino)






Uma arquiteta que, ao se aposentar, quer ser florista, quer trabalhar com flores. Esse é um sonho do qual não desiste e já planeja os dias que virão. Sim, ela gosta da profissão, é competente, mas buscará as flores quando não precisar mais ser arquiteta. É ela mesma quem fala da beleza da flor do cacto, tão delicada, contrastando com os espinhos que recobrem a planta. Não, ela não relacionou o cacto à vida nova de florista daqui a alguns anos. Tampouco relacionou os espinhos à vida presente, que certamente exige dela muitas posturas defensivas. Ela apenas falou da delicadeza de uma flor que se protege atrás de espinhos. E ela quer, tão-somente, ser florista.

Sua pintura, segundo relata, mostra uma base sólida (de arquiteta e virginiana, ela diz) e, acima, o que ela descreve como uma flor. As pétalas da flor têm forma de coração. Cada pétala, uma cor diferente. Sua fala sugere que, apesar do sonho de ser florista, não esquece da base da arquiteta. Comento sobre a ausência de talos, de elos, entre a flor e o chão.  A flor flutua paralelamente à retidão inerte da “base”, pintada com marrom firme, cor do solo. A flor não se une à base sólida no rodapé do papel. Não há entre elas (a flor e a base) a mais tênue ligação visível. Apenas estão lá: uma no baixo, a outra no alto. Uma fixa, outra flutuante.
Coincidentemente, todas as mulheres (desconhecidas entre si, a maioria) queixam-se de que se sentem mais homens do que mulheres. São mulheres com formação superior, bonitas, casadas, separadas, solteiras. Mas todas, todas elas se sentem mais homem do que mulher. E reclamam do peso que é ser homem sendo mulher.
A proposta inicial era responder livremente a um poema de Orides Fontela:

Adivinha
O que é impalpável
mas
pesa
O que é sem rosto
mas
fere
O que é invisível
mas
dói
(Orides Fontela)

As respostas racionais foram inúmeras. E, ainda que camufladas pela consciência, já revelavam uma versão que seria unânime: o peso que as mulheres carregam ao se sentirem mais homens do que mulheres. Essa foi a nossa grande “coincidência” no grupo de mulheres que se conheceram ontem. Todas elas carregam o “peso” de ser o homem que dizem ser.
Essa é apenas a orelha de um livro que escreveremos juntos. Mas as histórias, ainda não de fato contadas, deixam escapar um furtivo brilho. Talvez a luz transparente de lágrimas que ainda correrão. Ou a luz que se acumula sob a crosta de que são formados nossos rostos provisórios, que se desnudarão aos poucos, com o tempo, com a Magia que se faz presente em momentos prenhes. Venha de onde vier, um raio de luz sempre orna a escuridão. Apurar os sentidos e percebê-lo faz parte da abertura de um rito que evoca a Alma.

Abismos, buraco negro, portal, gota de sangue, vulva: mulheres escolhem imagens interessantes para traduzir seu universo singular. Mulheres pintam buracos negros de amarelo e juram que ali há luz, no fim. No fundo, debatem-se entre a esperança que colhem no Manual da Felicidade e a escuridão que evitam atravessar, temerosas de sua própria natureza feminina, feita de penumbras e visões. Mulheres temem ser mulheres. Renderam-se à fantasia de que só a luz solar pode revelar. Não sabem, ainda, que as sombras que envolvem a Lua são vidas que desabrocharão revestidas pelo tule do Mistério. E assim serão. Porque essa é a essência do feminino.

Uma mulher, apenas uma – a mais nova de todas –, resiste em dar nome ao que “pesa, fere e dói”, invisível e impalpável. “É algo aqui...”, diz ela, espalmando a mão no coração. “Mas eu não sei o que é!", explica. “Uma dor”, tenta ela dizer; mas acaba dizendo que não, que não era uma dor real.  E fico pensando como deve ser difícil para muitas mulheres traduzirem suas sensações, seus sentimentos, seus anseios mergulhados nos destroços de suas subjetividades destruídas. Sim, há dores que não doem. Mas são dores doídas. Reais. Nenhum aparelho detectará nada, nenhum medicamento atuará sobre essa espécie de dor que não dói, mas que é doída. Muitas mulheres sentem no coração o peso de um evento futuro. Captam, como radares, sinais distantes. Lagrimejam uma tristeza que não é só sua. Estacam, de forma precisamente técnica, o sangue de uma ferida que se alojou no fundo de um abismo que elas temem descer, simulacro de seu próprio ventre.

A maioria das mulheres veio atendendo ao chamado de “trabalhar o feminino”, um chamado clichê que em nada traduz a essência verdadeira da nossa proposta. Porque “trabalhar o feminino” não é fazer rituais evocando as deusas, e muito menos propiciar transes onde, longe de se conhecerem, as mulheres refugiam-se numa imagem muito além do seu universo, da sua realidade. Prefiro dizer que refletiremos sobre a subjetividade feminina e buscaremos uma voz genuína para nossas sensações, emoções, percepções.

Apesar das explicações sobre a dinâmica de nossos trabalhos, do foco na expressão, na imaginação, houve quem quisesse descobrir a “resposta certa” para o questionamento do poema de Orides Fontela.  “Não existe uma resposta certa. Existem muitas, talvez infinitas respostas certas”, alertei. “Toda e qualquer resposta é certa, é a sua resposta”, reforcei. A busca da “resposta certa” cria insegurança, inibições, medos. Além do mais, essa fixação na exatidão impede que a imaginação flua, que a nossa expressão, a mais genuína possível – a depender do estágio em que nos encontremos no espaço terapêutico –, possa ser exteriorizada. Trabalhar com Poesia é algo que permite atenuar o medo do erro, o medo do risco, evitando a cilada de uma direção única para um universo entrecortado por caminhos múltiplos.

O início de um encontro terapêutico é um momento de escuta profunda das primeiras expressões. O paciente é como uma casa que já foi reformada, talvez, inúmeras vezes. As paredes receberam várias camadas de tinta, à medida que a cor da superfície se desgastou, desbotou. A primeira cor jaz sobre sucessivas camadas de tintas, à espera de que possa, enfim, mostrar-se tal como é, numa relação íntima com o cimento e os blocos. O caminho é longo, às vezes, mas a compreensão de que sob tantas vestes sobrepostas estamos nós, nus, é um estímulo grande a continuar a caminhada.

Não, eu ainda nada sei desses universos desconhecidos que existem dentro de cada uma das mulheres que foram em busca de sua primeira cor.  Mas compreendi que todas elas, no fundo, buscam libertar-se do peso de “serem homens”. Querem ser mulheres. Não sabem, contudo, o que é ser mulher sem correr o risco de atravessar portais que sejam apenas imaginários, de mergulharem no abismo sem levarem uma potente lanterna, de se sentirem julgadas incapazes, de não corresponderem ao modelo de “mulher independente”. Como homens que se julgam ser, receiam afundar-se no pântano da paixão e serem, novamente, submetidas à submissão, à mudez de gerações passadas de mulheres.

Todas as vozes me alcançaram e delas falarei oportunamente. Neste momento, quero apenas lembrar que sob os espinhos do cacto esconde-se uma flor delicada e de rara beleza.