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18 de abr. de 2013

Arteterapia: a cura da ferida primitiva





Há dores cuja origem remonta a tempos antigos, trazidas ancestralmente e que se escondem sob os véus de outras dores. De alguma forma, apagamos essas dores da memória e focamos outras dores, mais complexas e recentes na história humana. Minha caminhada arteterapêutica mostrou-me a origem da dor que se irradiava de algum lugar profundo, invisível e, quase, inalcançável.

A escolha da formação em Arteterapia foi consequência da junção de muitas sincronicidades, muitas coincidências significativas, de modo que não pude ignorá-las, ainda que o quisesse. Arte e Psicologia sempre foram paixões íntimas e nunca assumidas claramente. E, em minhas terapias anteriores, o verbo era o senhor, a palavra era soberana, e o dialeto secreto da minha alma, esquecido, não podia traduzir um mundo de coisas sem nomes, de sensações desconhecidas, uma linguagem que eu já não sabia utilizar.

Os cursos de Arteterapia atraem muitas pessoas da área de plásticas, principalmente, o que, em princípio, parece ser natural. Eu não viera de nenhum grande elo com as artes, senão a poesia, embora sentisse intimidade com muitas delas. E, assim, cheguei ao curso virgem, desconhecendo técnicas, inaugurando muitas modalidades das artes.

E isso foi, ao meu ver, importante e imprescindível para o meu processo. Como eu não tinha praticamente nenhuma intimidade com as técnicas artísticas, decidi que minhas criações seriam, tanto quanto possível, guiadas pelos meus instintos. Realizava com as vísceras, muitas vezes, as tarefas solicitadas.

 Por alguma razão desconhecida, fui conduzida ao universo primitivo e me atraía por tudo que fosse natural, cru, bruto, na sua forma mais primitiva. Aos poucos fui me dando conta de que a expressão que minha alma ditava era uma expressão primitiva. Entendi que a ferida de minha alma ocultava-se em território interior longínquo. E era inevitável que eu caminhasse para ele, sem medo.

Não poderia acreditar, jamais, que todos precisassem fazer o mesmo caminho. Cada caminhada é singular, cada ferida queima em camadas diferentes da alma. A minha ferida era primitiva. Era o meu Feminino que sangrava fortemente. Era a mãe que precisava ser recolocada em seu devido patamar. Era minha natureza selvagem que queria voz – a voz que lhe fora roubada inadvertidamente há séculos e séculos e séculos. Era essa a “linguagem” que procurava o canal de expressão que eu, até então, não encontrara.

Utilizei diversas modalidades artísticas, identifiquei-me mais com algumas, menos com outras, mas todas foram pontes importantes para ajudar a decifrar meu universo simbólico, os conteúdos da cidade escura e desconhecida do inconsciente.

Sempre utilizava os materiais mais naturais que encontrava. A figura que modelei em argila – metade mulher, metade animal – praticamente formou-se sozinha em minhas mãos e revelaram que ainda havia uma metade minha que precisava ter patas, uivar, rosnar ou emitir qualquer ruído animal. A consciência de que fui profundamente ferida na minha dimensão mais primitiva foi aumentando. A arte expressa muitos de nossos aspectos inconscientes. Revela-nos, quando a palavra, sozinha, encontra seus limites e, muitas vezes, vela em vez de desvelar.
Muitos de nós, colegas na formação em Arteterapia, dominavam alguma técnica artística. Minha intimidade era meramente com as palavras e elas se mostraram impotentes inúmeras vezes.

Com a tinta, aprendi a ter mais confiança na magia da vida. Se escorria um vermelho, acidentalmente, sobre o rosto que eu tentava definir, logo eu descobriria que havia um sentido mais profundo. Algo sangrava em minha face. Minha biografia psíquica podia ser revelada em cores, em movimentos, em recortes e colagens. Compreendi que, qualquer que fosse a modalidade artística, o clamor de minha ferida seria ouvido e as mãos, intuitivamente, escolheriam o caminho das pedras mais brutas para percorrer, quando não a floresta, a mata virgem, ou a escuridão da noite com todos os seus olhos invisíveis.

A formação para quem se propõe a trabalhar com almas é contínua e interminável. As deusas tecelãs unem os fios da vida de tal forma que começamos a entender o que é fundamental, imprescindível, inevitável. Eventos sincronísticos, muitos, levaram-me à confirmação de que eu precisava olhar para trás. Não para um quilômetro atrás, mas para estradas intermináveis que me guiariam de volta ao meu primitivo, onde se encontrava a ferida que precisava ser curada. O mito de Quíron, o curador ferido, ganhou feições mais primitivas nos meus sonhos. Vinha como Obaluaê, o curador das religiões africanas, e num momento posterior, ainda vivenciando o processo, minha pele abriu-se em erupções repentinamente, que viravam feridas, mas que desapareceram tão misteriosamente como chegaram.

Através de minhas criações na formação em Arteterapia, pude dar forma a muito da minha energia psíquica e nomes ao que parecia inominável. A falta de preocupação com a estética das criações e a consciência da importância de cada etapa do processo criativo, além do resultado final, são mudanças que acontecem naturalmente no processo arteterapêutico. Expressar-se torna-se, assim, muito mais significativo do que os resultados que possamos alcançar. A originalidade de cada um emerge, como se ainda fôssemos crianças e ainda não tivéssemos sido moldados para ser igual a todos os outros.

A linguagem arteterapêutica é semelhante às imagens dos sonhos. Nosso inconsciente – cuja linguagem é essencialmente simbólica – encontra, na Arteterapia, o canal ideal de expressão. E o arteterapeuta, facilitador do processo, vai ajudando a traduzir a linguagem de símbolos expressos na criação, tenha ela a modalidade que tiver.

Verdade também é que acontece uma alquimia quando nos expressamos arteterapeuticamente. De repente, minha criação é uma metáfora do conflito inconsciente, é a materialização de uma energia, é o resultado da minha não-passividade diante do meu próprio processo de crescimento, autoconhecimento, individuação. Eu sou sujeito da minha história e posso interferir em qualquer pagina do enredo. A arte, a criação, é um algo interno que ganhou forma e que, portanto, está diretamente ligado aos nossos conflitos internos, nossos complexos, nossos clamores. Ao tomarmos consciência deles através da expressão artística, damos início, naturalmente, a muitas transformações.

Há relativamente pouco tempo, coisa de alguns anos pra cá, fui percebendo que as mulheres sofriam de dores às quais não sabiam nominar.  Muitos grupos e muitos profissionais, de diversas linhas terapêuticas, começaram a trabalhar com o universo feminino, atentos para as feridas da alma, para os conflitos inconscientes que muitas viviam.

Não sei quantos se dão conta, entretanto, de que é preciso curar feridas primais, escondidas sob várias outras feridas, que de alguma forma derivam das outras. Porque houve um tempo em que as mulheres foram deusas. Conheciam seu poder e tinham seus ritos respeitados. A mulher e a lua eram irmãs gêmeas. Marés, lua, Mulher, Natureza. A mulher já foi inteira e fragmentou-se à medida que caminhou para o que se chama de “evolução”, dentro de uma perspectiva patriarcal. Curar a ferida primordial é indispensável para se pensar na possibilidade de curas em outros níveis.

Trabalhar a ferida primitiva da mulher é um projeto que esteve, pouco a pouco, se formando na minha caminhada arteterapêutica.  E vai ganhando corpo a cada dia, enquanto eu própria vou acolhendo em mim, com amor e respeito, a minha ancestralidade.


11 comentários:

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  2. Claudinha Antunes BA



    Taninha,
    Testemunhar e compartilhar de tais processos com você foi e tem sido uma experiência de profunda comunhão e cumplicidade.
    Só posso dizer mais uma vez OBRIGADA!
    Bjo grande, Querida!

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  3. Fátima Amaral

    Encontrar-se acima de tudo é o maior dos anseios.

    Senti vontade de ter ao alcance nesse momento cores, tintas, para jogar nas paredes..rs

    Adorei tua jornada e gosto demais dessa entrega que faz e transmite.

    Beijos, prosperidade sempre!!

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  4. Lara Amaral


    Bonito, Tânia. Realmente, há certas dores que só a arte consegue expor e acalentar em alguns momentos. Às vezes duram para sempre, mas se pode encontrar uma forma mais bonita delas tomarem corpo.

    Beijo grande, flor.

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  5. Tonho

    AR...Terapia do entreterapia!

    :o)

    Meus Blogs:
    http://6vqcoisa.blogspot.com
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    http://arquitetonho.blogspot.com
    http://inter-in-ventar.blogspot.com
    http://qr-code-e-este.blogspot.com.br

    Até!

    byTONHO

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  6. Bonito, Tânia. Realmente, há certas dores que só a arte consegue expor e acalentar em alguns momentos. Às vezes duram para sempre, mas se pode encontrar uma forma mais bonita delas tomarem corpo.

    Beijo grande, flor.

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  7. além da poesia, eu me curo através do desenho e da pintura com giz de cera... esta segunda eu não mostro nem sei por quê! rs... mas me sinto muito leve quando desenho e pinto!

    Adorei te ler aqui!! Obrigada!!

    beijo!

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