Arte: John Ballou Newbrough
(Dedico aos colegas Arteterapeutas )
Nas minhas ficções pessoais
enquanto arteterapeuta, às vezes imagino que sou aprendiz de borboleta, cuja
função na vida é, essencialmente, polinizar olhares desencantados. Digo-me aprendiz, porque creio que todo
terapeuta é sempre um aprendiz de si mesmo, e os pacientes são fragmentos de
sua própria Dor materializada. No fundo, imagino que um dia alguns se
reconhecerão estrelas de uma mesma constelação há muito desmanchada.
Esse é também o Devaneio que
alimenta a loucura de amar a humanidade, o paraíso do chão, onde os deuses
enfraquecem homens e mulheres e atiram os animais numa selva insólita e
petrificada, entregues a sua própria sorte. Sim, é preciso amar profundamente o
que é humano, o que ainda rasteja, alheio a asas que clamam por libertação. Acredito
que esse deva ser o Primeiro Mandamento para aqueles cujo destino é cuidar do
outro, conhecer a textura subjetiva dos seres humanos. É preciso amar o pó da
terra como amamos o brilho das estrelas.
Dentro dessa percepção,
questiono-me sobre o papel real das religiões, indago-me a respeito dos
instintos artificialmente domados, da imposição de “caminhos da salvação”
estreitos, sufocantes, paraísos forjados de modo a desmerecer o que humano, a
obscurecer a Beleza terrena, a negar a possibilidade de se viver o sagrado por
meio de cada gesto profundamente humano.
Talvez, de tanto buscar no alto o sentido da existência, desaprendemos a
olhar o sagrado do chão, a Escuridão humana, em cujo ventre encontra-se a Luz.
O fato é que fomos, pouco a
pouco, rejeitando a nossa humanidade, rotulando nossos ímpetos criativos mais
primitivos de “pecado”, entediando as nossas retinas com clichês fantasiosos de
Beleza e Felicidade. Temos ânsia de Eternidade
e vamos caminhando em frente, com passos apressados, ávidos pelos paraísos que
se encontram sempre mais à frente. Nesse caminhar horizontal, vamos perdendo a
vida, deixando pelo caminho a Seiva. Artificializando a Existência. É preciso
verticalizar a caminhada e conhecer as nossas profundezas. É preciso vivenciar a plenitude das coisas
ínfimas; encontrar a diversidade de paraísos terrenos; encarar “a ferida que
não cicatriza nunca” de uma nova forma, com um olhar metafórico, que encontrará
uma infinidade de sentidos – com os matizes claros e escuros – para toda e
qualquer experiência vivida.
O que vivenciei no processo de
formação em Arteterapia legitima a minha ficção pessoal, a minha metáfora
íntima de borboleta polinizadora. Havia
pólen no olhar de quem me ensinou a amar a Arteterapia. Meu mundo largou-se,
coloriu-se, abriu espaço para a Beleza. Usando uma expressão hillmaniana, fui
reaprendendo a “fazer alma”. E hoje
compreendo que o papel da Imaginação é fundamental em toda terapêutica. Muito mais do que antes, também compreendo que
é preciso ir além da realidade para encontrar o Real. Já não quero ver, apenas; quero “transver” –
desejo despertado pelo inesquecível poeta Manoel de Barros: “O olho vê, a
lembrança revê, e a imaginação transvê”. Só através da Imaginação o homem pode
lançar-se a uma nova dimensão da vida, deixando para trás o ordinário e
conectando-se com a alma das coisas.
Tudo isso me faz lembrar do tão
falado “terceiro olho”, pelos esotéricos, por algumas correntes
espiritualistas, uma e outra religião.
Consta que o terceiro olho é a origem da intuição e corresponde a uma
possível glândula entre os nossos olhos humanos, visíveis. Existem, entre eles, inúmeros exercícios para
desenvolver esse olho oculto, a intuição. Pois eu creio que não há exercício
melhor do que o ato imaginativo para desenvolvermos não somente a capacidade
intuitiva, mas também para curarmos os nossos olhos, desliteralizar a
percepção, transformando-a em Imaginação.
A Poesia como olhar – não meramente como gênero literário – é a única
saída que nós, a Humanidade, podemos ter.
Nossas imagens pessoais foram adulteradas,
falsificadas, pela literalização da existência. A herança cartesiana teve força
suficiente para literalizar até mesmo os símbolos. E só podemos reverter o embotamento, a
cegueira dos homens para a alma das coisas, se nos dermos conta de que apenas
enxergamos, já não vemos. Ou apenas vemos, quando é preciso transver. Evocando
Clarice Lispector, poderíamos dizer que as linhas cartesianas esmagaram as entrelinhas, onde mora a Alma. E mais uma vez chamando em meu socorro o
poeta Manoel de Barros, um alerta: "As coisas não querem mais ser vistas
por pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de azul.” E nós podemos, sim, enxergar o divino azul
humano aqui na Terra.
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