No universo xamânico, há uma cura
física, anímica e espiritual muito intrigante conhecida por O Resgate da Alma. Tive a oportunidade de vivenciá-la certa vez
por meio de um índio nordestino da tribo kariri xocó e, embora “curada” do mal
estranho que me afligia, fiquei por muito tempo intrigada com aquele processo
primitivo de cura, cujo mistério não consegui, então, decifrar. Eu viera de
alguns dias de descanso na Chapada de Diamantina e fiquei, por um tempo
razoável, com a sensação de ausência de mim mesma. Poderia ter procurado um
médico, mas intuí que o índio sobre o qual me falaram e que estava hospedado
aqui na cidade poderia me sugerir algo que me tirasse do “lugar nenhum” onde eu
parecia estar. E fui até ele, mais por curiosidade, confesso.
O índio me recebeu e me fez uma
pergunta: “Está menstruada?”. Eu estava. Pediu-me que avisasse sobre o final do
sangramento e avisei. Ele, então, informou-me o dia em que me visitaria em
sonhos e no sai seguinte eu voltaria a ele. E voltei. O curador indígena me
perguntou se eu havia estado em algum lugar com águas e informei-lhe que havia
voltado recentemente da Chapada. Ele me explicou, em seguida, que uma parte da
minha alma havia ficado presa nas águas. Um homem moreno teria feito isso sem
nenhuma intenção ruim, mas a verdade é que parte da minha alma ainda estava lá.
E fui encaminhada para um quarto de atendimento improvisado, o índio acendeu o
cachimbo, girou em torno de mim, murmurou algumas palavras das quais não me
lembro e soprou, segundo me explicou, a alma de volta a mim. Saí de lá inteira,
sem mais a sensação de ausência, porém intrigada.
Mircea Eliade, famoso historiador
de religião romeno diz em seu livro “Xamanismo, Técnicas Antigas do Êxtase”:
“A principal função do xamã na
Ásia Central e do Norte é a cura mágica. Nessas regiões pode se encontrar
diversas concepções da causa da doença, mas aquela da “violação da alma” é de
longe a mais comum. A doença é atribuída ao afastamento ou ao roubo da alma, e
o tratamento em princípio resume-se em encontrá-la, capturá-la e obrigá-la a
retomar seu lugar no corpo do paciente. Apenas o xamã vê os espíritos e sabe
como exorcizá-los; apenas ele reconhece que a alma se afastou e é capaz de
alcançá-la em êxtase e trazê-la de volta ao corpo”.
Comecei a pensar nos xamãs
modernos – terapeutas, analistas, psicólogos – e questionar sobre as suas
habilidades em trazer as partes de almas que ficaram presas em lugares
psíquicos, gerando ausências. Pensei
também na psicologia junguiana e pós-junguiana. Lembrei-me de Hillman e de sua
psicologia arquetípica, que propõe o “fazer alma”, o "soul making". O conceito do Resgate da Alma dos xamãs parte
do princípio de que a alma humana, em circunstâncias extremas e traumáticas,
retiram-se para uma vida paralela, passando a viver em segurança precária, sem
evolução. De algum modo, modernamente podemos, também, falar da ausência de
partes de nossas almas e da ausência de sentido para a vida.
Nossa vivência (Traduzir-se: a
arte de contar a nossa própria história) é uma releitura psicológica do
primitivo trabalho de regate da alma. Aqui o terapeuta – não o xamã – será o
guia nessa jornada em busca da Alma. A
proposta de reescrevermos nossa história é, de antemão, um convite a
revisitarmos territórios psíquicos esquecidos, revermos páginas envelhecidas de
nosso “livro de memórias”, trazer à luz nossas ficções, almar as passagens de
nossa história que se abriram em
feridas, dores pulsantes, desvirtuando nossa caminhada em direção a nós mesmos.
O passado não se muda, é verdade, mas mudamos o olhar, descobrimos que é
possível rever o que vivenciamos com um sentido estético, encontrando a Beleza,
que, ausente, desbotou o colorido de cada dia vivido.
Haverá momentos de silêncios e introspecção,
mas também de criação e partilhas em volta da fogueira. Vamos contar a nossa
história e recuperar a vitalidade imaginativa, fundamental para a saúde
psíquica. Fica o convite!
O resgate da alma é um grande e belo trabalho de cura. Fiquei, estou feliz com tudo isso...a tua experiência...o teu compartilhamento...lindo texto, fez-me lembrar de um tempo em que estávamos próximas. Lindo recanto, este sítio. Não vou poder participar, como sempre, mas vou "convidar" algumas pessoas. Um abraço.
ResponderExcluirGrata pela leitura e pelo carinho, Norma!
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