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7 de jun. de 2014

O garimpeiro tem que entender o cascalho





Hoje, segundo dia de encontro com as mulheres do Grupo Arteterapêutico “A Primeira Cor”, me lembrei do velho garimpeiro pai de Ju, lá da Chapada Diamantina.  Na nossa primeira conversa, em frente a minha cabaninha no mato, onde eu passava uns dias, ele narrou suas aventuras de garimpeiro, nos tempos em que não era proibido remover os cascalhos em busca do diamante que mudaria vidas. Não questionei em nenhum momento o que era verdade, o que era crendice, o que era aumento – pela imaginação –  da realidade vivenciada pelo ex-garimpeiro.  Ouvi com atenção cada palavra, e vi nos olhos do homem um brilho de diamante que quase faiscava.
 – O diamante tem vontade, moça; ele não se mostra pra qualquer um não – afiançava-me o pai de Ju.  Segundo contou, o diamante é que escolhia o garimpeiro, com base em critérios de uma alma mineral que eu tentava compreender.  Seus relatos pareciam transportá-lo para o passado, seu olhar se perdia, enquanto a voz prosseguia nos ensinamentos de uma ciência nativa que muito me interessava. Os gestos vinham-lhe em momentos fugidios, que lhe traziam de volta a um presente sem o esplendor da pedra cobiçada.
Inicialmente, não soube por que associei o processo terapêutico às narrativas do homem que há anos não vejo. Só aos poucos fui me dando conta, à medida que recordava as suas palavras. “Moça, quando o diamante tá por perto, a gente sabe, viu? Ele pode até não se mostrar, se ele não quiser, mas a gente sabe que ele está olhando a gente logo ali, em algum lugar. Às vezes tá na cara, mas ele cega a gente, porque vai escolher outro garimpeiro”. Eu ouvia encantada sobre a ciência daquele homem, que, àquela altura, me parecia um sábio, ainda que nem soubesse escrever o próprio nome.  O diamante já não era tão-somente uma pedra, agora: era uma entidade! E prossegui ouvindo.
O homem caminhou em direção a algum lugar do riozinho que passa atrás do terreno, agachou-se, sequioso, e fechou na mão um punhado de pedras que nem de longe lembravam o diamante. Veio em minha direção, esticou a mão e, enfim, explicou: “Tá vendo essas pedrinhas, moça? Olha bem: tá vendo? Sabe que pedras são essas?”. Olhei as pedras buscando alguma espécie de brilho encoberto, soterrado, mas nada vi. “Não, não sei...”, respondi, já me sentindo uma ignorante completa em relação ao mundo das pedras. Ah, o que diria o homem? Aquilo seriam diamantes disfarçados? As pedras saberiam disfarçar-se também? Não, isso já era demais. Mas o ex-garimpeiro não me deixou apreensiva por muito tempo. Acariciava as pedras ao mesmo tempo em que explicava: “Quando a gente encontra essas pedrinhas, é sinal de que o diamante está por perto, moça. Olha bem como elas são. A senhora não dá nada por elas, né? Pois então: quando elas aparecem, pode ter certeza de que tem diamante bem perto. No seu terreno tem diamante, viu? No dia em que ele quiser se mostrar...se ele quiser se mostrar pra senhora, ah...a senhora vai tomar um susto! Porque ele brilha, viu, moça? A senhora conhece diamante?”.  Santo deus, aquele homem não tinha ideia da loucura que estava fazendo comigo naquela hora. Não sabia que todos os cacos de vidro e pingos d’água sob o efeito da luz solar estavam fadados a serem diamantes, sob o meu olhar embriagado por natureza.
Fiquei muito interessada naquela ciência nativa de garimpeiro nostálgico. Por algumas semanas, tudo o que reluzia... era diamante. Não estava interessada no valor da pedra, nos ganhos materiais que ela poderia proporcionar-me.  Tudo o que a minha fantasia criava resumia-se em “ser escolhida pela pedra”. Aí estava a magia, o encanto. Mas nunca encontrei nada além de diamantes imaginários, projetados em qualquer brilho momentâneo do sol sobre a areia molhada da margem do rio. Até o dia em que me lembrei de uma frase do velho e nostálgico garimpeiro: “O garimpeiro tem que entender o cascalho, moça!”. Não, eu ainda não entendia.  E recordei de mais um ensinamento daquele mestre ocasional: “Moça, diamante cobiçado ‘queima’, pode ter certeza”. “Queimar” significa, no jargão garimpeiro, “voltar para o leito do rio”. Não, não: eu não queria cobiçar diamantes.  Esqueci-me do homem, das pedras sinalizadoras, dos diamantes. Até hoje, quando ele me veio à mente de repente.

E então recordei-me do velho garimpeiro. Ouvindo cada mulher do grupo terapêutico, identificando auto-enganos, sentindo cada mensagem contida na arte expressa, escutei o sussurro das suas próprias almas e da minha também, lembrei-me das pedras que nos levam ao brilho límpido do diamante. Dessa vez era diferente.  Não haveria perigo de queimaduras. Os diamantes não voltariam ao leito do rio. Eu não tinha pressa. Experimentava o prazer de tocar cada pedrinha aparentemente insignificante. Sentia sua textura. Seu brilho latente. Enternecia-me a aspereza das pedras, o brilho fugaz e artificial com que se mostravam, sabendo-se, de algum modo, diamantes. Mas eu sabia. Agora eu realmente já sabia. Os diamantes não “queimariam”, porque eu não os cobiçava. Esperaria. Os diamantes nos escolhem. Mas nós, de alguma maneira, já os enxergamos pelas pedras do caminho.  E, como bons garimpeiros, guardamos cada uma que recolhemos. Também são preciosas  para quem nasceu com o garimpo como destino. 

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