Como poeta de alma, posso falar
nos deuses-artesãos que imagino serem os cuidadores dos pequenos e
significativos detalhes da minha existência. Eles fazem os arremates, o
acabamento, entrelaçam fios importantes da Grande Teia, e vão, pouco a pouco,
conduzindo-me ao meu Destino. Não sei bem se isso é crença ou poesia, fé ou delírio
poético, mas sei que creio que assim é.
De tempos em tempos, uma
palavrinha-semente é soprada para o solo fértil da minha alma, eu a escuto,
rego-a como se fosse mesmo uma plantinha e fico atenta para a síntese que ela
está trazendo à minha vida. Nos últimos anos, “singularidade” é a palavra que
se aninha em mim e insinua-se em cada gesto, cada ação, cada projeto, sonho,
desejo. As palavras-sementes não nos chegam à toa. Têm a ver com nossa história
de vida e se apresentam sob diversas formas, ao longo da vida, até que tenhamos
condições de decifrar a mensagem da Alma.
Nunca fui convencional, sempre
duvidei do óbvio, acreditava, ainda na infância, que havia um dialeto só meu,
esquecido por algum motivo que eu desconhecia, e sabia que, mais cedo ou mais
tarde, iria querer recuperá-lo. Os caminhos tentados foram vários, porque há
que se procurar, sempre, o seu próprio caminho. De alguma forma, a tal da “singularidade”
passava roçando por mim e eu ainda receava olhar sua face. Um dia olharia. Um
dia olhei.
Hoje sou, formalmente, uma
terapeuta. Preparei-me tecnicamente para isso. Digo tecnicamente, porque um
cuidador de almas nasce cuidador de almas. Os instrumentos que utilizará podem
ser muitos. Ou nenhum, se não descobrir o que significa a ferida sangrando
invisível e profundamente e ensinando-lhe o que é dor, o que é amor, o que é
compaixão. Eu nunca soube exatamente qual seriam os meus instrumentos. Sabia,
sim, que precisava escutar e traduzir a linguagem do sangue escorrendo nas
cavernas da minha alma. Escutar-me. Cuidar de mim. E foi com a palavra, essa
amiga íntima com a qual sempre entro em desavença, que comecei a minha jornada.
Terapias nas quais a palavra era o instrumento principal. Psicanálise,
Psicodrama, Psicologia analítica, xamanismo, PNL, enfim, muitas buscas, que
foram elucidando-me para mim mesma.
Mas faltava algo. Por mais que me
grudasse à palavra, que a enaltecesse, havia lacunas que a palavra não supria.
Seria o meu dialeto esquecido? Foi quando encontrei a Arteterapia. Será? –
pensei... Mas os tais dos deuses-artesãos, desse meu delírio poético, foram me
conduzindo a ela. Arteterapia cura mesmo? – muitos, que ainda desconhecem o que
seja exatamente a Arteterapia me perguntam. Resposta: não! Nada cura ninguém. O
que entendo por cura, no sentido profundo da palavra, seria algo como a
iluminação, a perfeição. E a perfeição não existe. Aliás, a ânsia de perfeição
chega a ser patológica.
Mas, se a Arteterapia não cura, o
que ela faz? E, outra dúvida: submeter-se à Arteterapia é fazer arte? Posso
sozinho fazer esse caminho, pintando, dançando, escrevendo, desenhando...?
Posso falar da minha experiência
particular com a Arteterapia. Não, eu não acredito em caminhos únicos. Acredito
na “singularidade” de cada pessoa e em caminhos que se ajustem mais ou menos ao
que cada um de nós somos. Na minha vida, a Arteterapia veio como o caminho
ideal. A sensibilidade de minha alma é aquela sensibilidade dos artistas. O
dialeto que eu procurava e do qual me julgava esquecida não era necessariamente
um dialeto. Há vivências, sentimentos, emoções, dores, feridas, percepções que
não podem ser definidas com palavras. Para alguns, ressalto sempre. E aí é que
entra a Arteterapia. E foi aí que se deu a grande surpresa em minha vida: falar
através de diversas modalidades artísticas, sem que fosse necessário ter
conhecimento prévio de técnicas, sem preocupações estéticas e, o mais
importante, travando um diálogo lúdico, maravilhoso, com a minha criança
interna.
As várias modalidades artísticas
servem a vários propósitos. Todas elas são capazes de fazer ponte com esse
universo misterioso, escuro, chamado inconsciente.
E cada modalidade ajusta-se melhor a determinado fim, o que exige do
arteterapeuta o conhecimento da alma, a vivência e o amadurecimento que
desvelarão, pouco a pouco, os véus que recobrem as feridas escondidas. O
inconsciente fala-nos através de símbolos, de imagens simbólicas, que se
projetam na colagem, na modelagem, na pintura, no desenho, na assemblage e em
tantas outras modalidades utilizadas pela Arteterapia.
É uma terapia suave. A palavra
está sempre presente, porque a palavra é indispensável. Mas a magia das
auto-revelações acontece mesmo com a criação. Eu, que já vinha de outras
terapias que priorizavam a palavras, que trazia as lacunas do indizível – mesmo
através das associações livres, dos atos falhos e de tantos outros recursos válidos
e que me auxiliaram bastante –, pude, finalmente, dizer o indizível através da
expressão artística. Reconhecer no processo do criar muito do que era em mim
conflitos, medos, impossibilidades...
A vivência que tive como
professora de Redação por alguns anos mostrou-me que não haveria técnica que
fizesse com que os alunos a caminho da Universidade aprendessem a escrever.
Porque não sabiam imaginar. Porque vivemos uma crise muito grave de falta de
imaginação. Porque a chamada “realidade” não nos dá muitas possibilidades de
voo. Passei por sustos enormes vendo alunos com uma coleção de palavras dadas
por professores, tentando inseri-las no texto que nem nascia. Outros, com régua,
medindo o tamanho do texto, orientados também por professores. E ninguém sabia
mais imaginar, como já souberam um dia, antes de serem enquadrados na “realidade”.
A Arteterapia desperta a criança
entorpecida dentro da gente. Abre os porões onde muitas foram trancafiadas.
Retira a mordaça de tantas outras. Convida e estimula cada um de nós à expressão
singular, sem julgamentos, sem avaliações estéticas. E, podem acreditar, revela
facetas nossas das quais não nos dávamos conta. Não sabíamos. Desconhecíamos.
Além disso, é muito gratificante materializar, em forma de arte, um conflito,
um medo, um anseio, uma dor até então desconhecida. O resultado disso mais
direto é sermos apresentados à nossa essência verdadeira. É olharmos uma criação
e, pasmos, dizermos: “Mas então era isso que me fazia recear dar um passo novo
na minha vida? Era isso que impedia que eu me tornasse mais flexível? Era isso
que me causava insônia? Não raras vezes,
perguntamos: “Eu fiz isso? Fui eu mesmo?”.
Nossos fantasmas invisíveis vão
ganhando forma. Às vezes são de barro, de argila, esse material ancestral que
pode ajudar a materializar anseios, feridas primitivas. Às vezes os fantasmas
cantam um canto todo seu, que vem de um bosque esquecido de sua infância, e você
se vê passarinho, a dizer coisas que só os passarinhos entendem, mas que fazem
com que os humanos ouçam e comecem a compreender que você é um pássaro. Outras
vezes, os fantasmas projetam-se em aquarela, multicoloridos ou negros, e você
dialoga com eles. E a gente não tem medo de ser arte. Não tem medo de ser vísceras
e sangue, nuvens ou água.
Durante a formação, vivi a experiência
do canto da minha alma. Eu não sabia quem cantava em mim, mas era eu. Nunca
ouvira, de fato, aquela voz, aqueles sons. Os colegas emocionaram-se, houve
quem chorasse até. Mas, eu, com minha alma poética, pensei: um passarinho mora
em mim! E fiquei feliz. E descobri que é preciso conhecer todas as vozes que
nos habitam.
O sonho de realizar a oficina
Sonhar com as Mãos é antigo. Mas antes eu precisava dar forma artística a todos
os meus fantasmas. As oficinas estão a caminho. Será um espaço onde, juntos,
reaprenderemos a imaginar, recuperaremos a nossa singularidade, teceremos
sonhos com as mãos. As imagens oníricas ganharão forma. Poderemos confeccionar
com as mãos os sonhos, soprar e dar-lhe vida real.
Nós somos singulares, por mais
que todo um sistema tente fazer com que nos tornemos robôs, criaturas em série,
vestidos iguais, penteados iguais, repetindo as mesmas palavras e consumindo
sempre mais e mais à procura da felicidade. A felicidade só se aproxima de quem
busca ser o que verdadeiramente é. E para sabermos quem somos é preciso
libertar a imaginação.
Fazer arte não é arteterapia.
Arteterapia é utilizar a arte como ponte para o nosso mundo desconhecido. O
profissional da Arteterapia é um facilitador do processo, preparado para
reconhecer e ajudar a decifrar cada símbolo que emerge à luz através da criação.
Antes de tudo, o Arteterapeuta é um profissional que ama o que faz. Que ama as
pessoas e não teme a singularidade de cada um.