"Ouve-me, ouve o
meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra
coisa de que na verdade não falo porque eu mesma não posso."
(Clarice Lispector)
Tenho Netuno em cima do meu Sol no
mapa natal. Astrologia isso. E poesia, porque tudo pode ser transformado em
poesia. Ou mais que isso: tudo É poesia. Mas traduzindo, olho o mundo sempre
através de uma lente de assombro. Um plástico voando torna-se, aos meus olhos,
uma dança. A dança da entrega do plástico ao vento. Ou do homem ao seu destino.
Enfim, há uma espécie de autismo nisso tudo. No bom sentido. E não sei se
existe mau sentido. Mau sentido há quando há sofrimento. E ver poesia em tudo
não faz sofrer. Não a mim. O problema está, entretanto, em traduzir o que vejo,
exatamente como vejo e sinto. Faltam palavras. Às vezes tento, mas elas ficam
sempre aquém da sensação vivida. Netuno impõe-me uma nova linguagem, uma linguagem poética, e há métaforas netúnicas quase indecifráveis.
Ainda sobre o impacto da
psicologia arquetípica de Hillman, fico pensando na força da imagem. No poder
da imagem. Na veracidade da imagem. Há o intraduzível. Só a arte pode esboçar o
intraduzível. Só a poesia pode abraçar o intraduzível. Criar com ele uma
relação íntima. Um casamento, porém, que preserve os mistérios que não se
desvelam nunca. Ainda assim, só a arte pode acariciar o intangível e eriçar
seus pêlos. Causar arrepios. Excitá-lo e levá-lo ao gozo.
A psicologia arquetípica de
Hillman é oftalmológica. Trata dos olhos, mas não dos olhos físicos. Trata dos
olhos sutis. Do olhar. Recupera não as córneas, mas o assombro. Porque, de
algum modo, nossos olhos estão adoecidos. Ficamos com as palavras e suas
interpretações estereotipadas porque não acreditamos mais nas imagens que nos
arrebatam. Tememos as imagens que a imaginação ainda consegue criar, muito
através dos sonhos, por julgarmos serem elas inverossímeis. Nossos olhos
adoeceram tanto, que já não conseguimos reconhecer nas imagens a representação
fiel de realidades íntimas e fundamentais.
Novamente, trago a criança como
foco principal na Arteterapia. Porque as crianças olham com assombro aquilo que
desprezamos. As crianças tentam desvendar aquilo que para nós, adultos, não
passa de uma casca sem conteúdo. Não vislumbramos os véus, a infinitude de véus
que recobrem a existência. Não há nada que brilhe, todo verde não passa de um
verde, os adjetivos morrem afogados no lago raso e enlameado dos nossos olhos enfermos.
A Arteterapia é a terapêutica do
assombro, do êxtase, através do processo criativo, da descoberta de imagens
que, por si só, mostram o caminho que a alma procura. E muitas vezes a criação
é a própria alma a falar. Na medida em que vamos criando, sem preocupações
estéticas, deixando-nos guiar pelas sensações, pela alma encarnada nas mãos,
vamos também alcançando a criança que deixamos para trás e que tanto tem a nos
dizer, a nos mostrar, a nos perguntar. O assombro volta. A alma ganha vida
novamente. E descobrimos que o mundo, a existência, não tinha as cores cinzas
que víamos com o olhar adoecido. O colorido volta. O caminho às vezes é
outro, contrário àquele que estávamos fazendo. Mas perdemos o medo de começar a
ser, enfim, quem verdadeiramente somos.
O anseio de Clarice Lispector, registrado no alto da página, reflete o pedido da alma, que perdeu a voz. “Capta essa outra coisa de que na verdade não falo
porque eu mesma não posso." Eu mesma já falei isso inúmeras vezes enquanto
paciente. Ninguém pôde me dizer: fique com a imagem. Não há como eu, como terapeuta,
não dizer convicta: fique com a imagem.Que é essa outra coisa de que fala Clarice e que ela confessa não saber dizer. E olha que Clarice falava com a alma como ninguém.
É preciso olhos enviesados e Lua cheia para encontrar a si próprio. E a Lua é o próprio feminino, no seu sentido mais amplo: é arte, intuição, imaginação e delírio.
A imaginação é a respiração da alma.
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