“...as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas,
as coisas, desejam ser olhadas de azul — desejam ser olhadas diferentemente,
por ângulos inopinados, por lentes inventivas, por vistas delirantes”. (Manoel
de Barros)
A frase do poeta Manoel de Barros
fez-me lembrar da Arteterapia. Ainda nos
primeiros contatos com a terapêutica, emerge um sentimento de que não estamos
usando a nossa cor real e que precisamos encontrar nosso tom. Isso falando
metaforicamente, porque a Arteterapia abarca muito mais do que cores. Falo do incipiente
anseio de arrancar as tintas encardidas que nos recobre, e que nos escondem de
nós mesmos, e começar a vislumbrar a cor da alma. Que cor tem a nossa alma?
É, teoricamente, impossível que
um arteterapeuta não tenha intimidade com as vias delirantes que muitos
pacientes haverão de percorrer, porque a arte está ali, também, e talvez
principalmente, a serviço do delírio, querendo
as lentes inventivas das quais fala o poeta. Porque não são apenas as coisas
que não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. As pessoas também desejam
e muitas vezes precisam ser olhadas por ângulos imprevistos, que às vezes o
excesso de apego às teorias impossibilita.
O próprio fazer criativo exige
olhares de delírio do arteterapeuta em relação ao paciente. Porque é de
atividades artísticas que estamos falando. E não é a arte pela arte. Na
Arteterapia a arte é a grande mediadora entre o universo consciente e o
universo inconsciente. Ela vem impregnada de histórias, de solicitações, de
marcas, cicatrizes, sombras, retratadas das formas mais sóbrias às mais
extravagantes. E tudo são símbolos.
Vejam esse poema, de Jorge
Pimenta:
miados para pele branda e seus fulgores
trago gatos nas mãos
a trepar candeeiros do
cimo da rua
onde baloiço o corpo
como naves seguras nas
vagas do fim do dia.
percorrem-me
de um hemisfério ao
outro,
miando papoilas com
que seduzem o sol (lá fora)
e o sal (bem ali, no
lugar do suspiro que mata
devagarinho).
umas vezes paro,
outras ignoro-os,
mas de todas as vezes
se fazem estátuas antigas
impacientando palavras
e adivinhando
a escuridão.
no duelo de olhares
cruzados,
sinto as fábulas que
li e que me sabem
cada vez mais seco,
quase objeto
a secar lábios e
beijos.
corro para a porta e,
sem os ver,
sei-lhes as sombras
que me seguem
as sombras que um dia
morreram a boca
e me ataram ao
silêncio branco a que chamamos
casa
essa casa onde tu és
apenas silhueta
de fulgor brando com
que as manhãs
me acendem todas as
candeias.
olho pela janela e
estou só,
menos só, talvez, do
que ontem
e em todos os dias que
te ousei escrever.
Essa é uma linguagem delirante de
poeta. Estas são imagens que, em Arteterapia, renderiam talvez algumas sessões,
ou talvez não, a depender da direção que tomássemos. Para essa linguagem,
precisamos nós, arteterapeutas, entrar também em estado de delírio, a fim de
que possamos acompanhar a criação (aqui no caso um poema, mas poderia ser uma
pintura, uma modelagem ou qualquer outra modalidade artística). Pouco importa
se a arte é bela ou não, se agrada ou não, porque não é a estética o foco da
Arteterapia para a arte. É muito mais do que isso. Cada imagem é reveladora de
dimensões secretas, de compartimentos nossos aos quais nunca fomos, solos nos
quais nunca pisamos conscientemente.
Além do mais, quanto mais nos
libertamos das regras, dos receios de julgamentos, do medo de criar e criar-se,
inevitavelmente, mais delirantes podemos ficar, enriquecendo o material que nos
dirá muito de nossas profundezas.
Começo flertar com a Psicologia
Arquetípica de Hillman justamente por ela própria flertar com a Poesia e trazer
alma ao que poderia se tornar mecânico. Toda e qualquer teoria que despreze a
dimensão delirante da terapia, do paciente, de nada serve. Delirantes precisam
ser o paciente e o terapeuta em muitos momentos.
trago gatos nas mãos
a trepar candeeiros do
cimo da rua
Esta é um olhar delirante do
poeta, por sinal um grande poeta português, que carece ser olhado
diferentemente. Ele não pode ser visto ou lido por pessoas razoáveis. Talvez
ele deseje ser olhado de azul. Lilás, Amarelo. Há que se precisar saber a cor
com que olharemos cada paciente. Ao fim de um tempo, saberemos olhar cada um
com a sua própria cor, com nosso olhar também embriagado da poesia da alma do
paciente.
Delirar é preciso.
olhos-te desde aqui, taninha, e sinto, mais do que sei:
ResponderExcluir"Pouco importa se a arte é bela ou não, se agrada ou não, porque não é a estética o foco da Arteterapia para a arte. É muito mais do que isso. Cada imagem é reveladora de dimensões secretas, de compartimentos nossos aos quais nunca fomos, solos nos quais nunca pisamos conscientemente.":
levo-te comigo, sim?
beijinho!
delirar: vem da lira antiquíssima
ResponderExcluircanção atávica
beijo