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2 de mai. de 2013

Eu te olho por vistas delirantes









“...as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas, as coisas, desejam ser olhadas de azul — desejam ser olhadas diferentemente, por ângulos inopinados, por lentes inventivas, por vistas delirantes”. (Manoel de Barros)



A frase do poeta Manoel de Barros fez-me lembrar da Arteterapia.  Ainda nos primeiros contatos com a terapêutica, emerge um sentimento de que não estamos usando a nossa cor real e que precisamos encontrar nosso tom. Isso falando metaforicamente, porque a Arteterapia abarca muito mais do que cores. Falo do incipiente anseio de arrancar as tintas encardidas que nos recobre, e que nos escondem de nós mesmos, e começar a vislumbrar a cor da alma. Que cor tem a nossa alma?

É, teoricamente, impossível que um arteterapeuta não tenha intimidade com as vias delirantes que muitos pacientes haverão de percorrer, porque a arte está ali, também, e talvez principalmente,  a serviço do delírio, querendo as lentes inventivas das quais fala o poeta. Porque não são apenas as coisas que não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. As pessoas também desejam e muitas vezes precisam ser olhadas por ângulos imprevistos, que às vezes o excesso de apego às teorias impossibilita.

O próprio fazer criativo exige olhares de delírio do arteterapeuta em relação ao paciente. Porque é de atividades artísticas que estamos falando. E não é a arte pela arte. Na Arteterapia a arte é a grande mediadora entre o universo consciente e o universo inconsciente. Ela vem impregnada de histórias, de solicitações, de marcas, cicatrizes, sombras, retratadas das formas mais sóbrias às mais extravagantes. E tudo são símbolos.

Vejam esse poema, de Jorge Pimenta:


miados para pele branda e seus fulgores

trago gatos nas mãos
a trepar candeeiros do cimo da rua
onde baloiço o corpo
como naves seguras nas vagas do fim do dia.
percorrem-me
de um hemisfério ao outro,
miando papoilas com que seduzem o sol (lá fora)
e o sal (bem ali, no lugar do suspiro que mata
devagarinho).
umas vezes paro, outras ignoro-os,
mas de todas as vezes se fazem estátuas antigas
impacientando palavras e adivinhando
a escuridão.
no duelo de olhares cruzados,
sinto as fábulas que li e que me sabem
cada vez mais seco, quase objeto
a secar lábios e beijos.
corro para a porta e,
sem os ver,
sei-lhes as sombras que me seguem
as sombras que um dia morreram a boca
e me ataram ao silêncio branco a que chamamos
casa
essa casa onde tu és apenas silhueta
de fulgor brando com que as manhãs
me acendem todas as candeias.

olho pela janela e estou só,
menos só, talvez, do que ontem
e em todos os dias que te ousei escrever.

Essa é uma linguagem delirante de poeta. Estas são imagens que, em Arteterapia, renderiam talvez algumas sessões, ou talvez não, a depender da direção que tomássemos. Para essa linguagem, precisamos nós, arteterapeutas, entrar também em estado de delírio, a fim de que possamos acompanhar a criação (aqui no caso um poema, mas poderia ser uma pintura, uma modelagem ou qualquer outra modalidade artística). Pouco importa se a arte é bela ou não, se agrada ou não, porque não é a estética o foco da Arteterapia para a arte. É muito mais do que isso. Cada imagem é reveladora de dimensões secretas, de compartimentos nossos aos quais nunca fomos, solos nos quais nunca pisamos conscientemente.

Além do mais, quanto mais nos libertamos das regras, dos receios de julgamentos, do medo de criar e criar-se, inevitavelmente, mais delirantes podemos ficar, enriquecendo o material que nos dirá muito de nossas profundezas.

Começo flertar com a Psicologia Arquetípica de Hillman justamente por ela própria flertar com a Poesia e trazer alma ao que poderia se tornar mecânico. Toda e qualquer teoria que despreze a dimensão delirante da terapia, do paciente, de nada serve. Delirantes precisam ser o paciente e o terapeuta em muitos momentos.

trago gatos nas mãos
a trepar candeeiros do cimo da rua

Esta é um olhar delirante do poeta, por sinal um grande poeta português, que carece ser olhado diferentemente. Ele não pode ser visto ou lido por pessoas razoáveis. Talvez ele deseje ser olhado de azul. Lilás, Amarelo. Há que se precisar saber a cor com que olharemos cada paciente. Ao fim de um tempo, saberemos olhar cada um com a sua própria cor, com nosso olhar também embriagado da poesia da alma do paciente.

Delirar é preciso.

2 comentários:

  1. olhos-te desde aqui, taninha, e sinto, mais do que sei:

    "Pouco importa se a arte é bela ou não, se agrada ou não, porque não é a estética o foco da Arteterapia para a arte. É muito mais do que isso. Cada imagem é reveladora de dimensões secretas, de compartimentos nossos aos quais nunca fomos, solos nos quais nunca pisamos conscientemente.":
    levo-te comigo, sim?

    beijinho!

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  2. delirar: vem da lira antiquíssima
    canção atávica



    beijo

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